sexta-feira, 20 de março de 2020

Fabulário, de Ana Santos






Por Adriane Garcia

Segundo Paul Ricoeura imagem-recordação está presente no espírito como alguma coisa que já não está lá, mas esteve.” Há um “pequeno milagre”, como chama Ricoeur, no reconhecimento de algo que, não estando mais lá, é reconhecido como tendo estado.

O livro Fabulário (ed. Confraria do Vento), de Ana Santos, divide-se em três partes: Museu mínimo, Microcosmo e Fabulário. As três partes dialogam entre si, dando unidade ao livro. Seu centro é a memória como motor para a narrativa. Já em Museu mínimo fica clara a composição a partir do memorial que a poeta traz, um museu da infância – esse lugar privilegiado da memória; pois a infância se aproxima dos contos de fada para o bem e para o mal naquilo que traz de tragédia e mágica.

É pela memória que Ana Santos cria as imagens de Fabulário, buscando um elo entre passado e presente. A forma encontra o tema, já que as fábulas e os contos de fada trazem um arcabouço da memória coletiva. Se a lembrança da poeta é uma experiência individual, ao transformar essa lembrança em poesia ela seleciona aquilo que pode dialogar com o outro, na sua também experiência individual; experiências únicas, mas que se encontrando podem se reconhecer, traduzindo valores, sentimentos e sensações universais. No poema Retrato de família, por exemplo, a poeta escreve como quem pinta. O poema é uma verdadeira composição e o leitor, ao ver o retrato, pensa nos próprios retratos de família que poderia pintar. Para além das descrições, na sexta estrofe, há um susto comum a todas as pessoas – é a constatação da finitude, da perda:

(Se alguém escavasse
o quintal da infância, acharia ossos
de aves e cães, uns brinquedos
terrosos, o corpo desfeito
de um fantoche antigo.)

Para além da beleza, versos exatos, Ana Santos trabalha com uma variação criativa de poemas, tanto de elementos quanto de forma. Sua memória, a princípio pessoal, é também memória crítica, cultural, coletiva. Ao contrário do que poderia facilmente acontecer com um livro cuja matéria prima é a lembrança (ser apenas solitário), Fabulário é solidário, e lança o olhar que da imagem interior vai ao outro. No poema Curtas, as fábulas atualizam, como rápidas cenas cinematográficas, a dor da maternidade confrontada com a morte: Maria canta/ e embala/ o corpo quente. Do seu menino. //  O corpo esfria: // Maria / canta mais alto.

Em Fabulário, encontramos seres e objetos comuns ao imaginário geral. Ana Santos os reorganiza de maneira a dar sentido para os fragmentos, afinal, não é possível acessar o passado completamente tal qual tenha sido. A memória, sendo seletiva, está sempre sob suspeita, e mesmo com aqueles que partilhamos as mesmas histórias, há divergências na narrativa. É que a experiência é única e intransferível e está subordinada ao tempo e às perspectivas de cada um. Ainda que o caráter individual da lembrança seja inegável, também é inegável que a memória se constrói em teia de relações sociais. Fabulário traz histórias reais que perambularam pelo mundo, fábulas que se parecem com o comum dos dias, mas que a poesia eleva ao status de símbolo e metáfora. Alguns poemas falarão da experiência pessoal da poeta, outros daquilo que ela viu, ouviu, pois a própria pessoa é também uma composição de memórias. Há um temor por perder aquilo que nos constitui primordialmente, o risco do apagamento que a todo tempo nos lembra a morte. Thomas Wolfe, em O menino perdido, escreveu uma frase que vem a calhar: “Tudo se perde a tal ponto que parece nunca ter acontecido... a ponto de ser algo com que sonhamos em algum lugar”.  Ana Santos sabe e confessa: “Receio perder a memória. Escrevo por precaução.”

HIBERNAÇÃO

A tia-avó antiquíssima
fez a brusca
revelação:

não era eu
o menino da foto,
tesouro único
da infância.

Era Artur,
o primo achado, uma noite,
calçando patins solares,
na fenda de um lago
congelado.
Os mesmos olhos
grandes e claros.

Não há provas
da criança que fui –
e bem posso
ter sido a outra.

Quem sabe ainda
estou dormindo
naquela floresta azul?

É verão em Varsóvia.
O lago líquido
Guarda meus olhos,
os olhos
do primo Artur.




ORAÇÃO

Meu Deus,
que exista algo
além do vácuo
adivinhado.
Afinal, tudo que amei
será cinza, será pó, será
nada?

Estou no exílio,
em minha tenda
de carne e ossos.
Corto o cabelo,
uso esta máscara
triste:
assim me conhecem.
Guardo as verdades
em relicário –
o que conto são lendas
assombrosas.

Vindo
de onde vim, percorri
obscuros caminhos.
Minha pátria
não tem nome,
meu mapa
é uma flecha em voo.
Eu temo a hora
e a forma
do retorno.

Para que nos matura
o trabalho do tempo?
Para que nos degrada?
Por que esta alegria
gasta em vão?

Que a vida
resista à vida,
polén disperso
na brisa.
Que haja sentido
em nossa
ilusão dividida.
Amém.  


TELEGRAMAS

I
FUGI DE TREM ARRANHA-CÉUS COCA E PASTEL FELIZ DEMAIS ADEUS.

BRAÇOS ABERTOS FEIJÃO NO FGO ROSÁRIO E VELA AMÉM.

II
CASA INUNDADA PLEURA INFLAMADA SÓ PÃO MOFADO QUE DEUS ME AJUDE.

VOU PARAR CHUVA VOU PLANTAR TRIGO LEVAR QUEM SABE EXTREMA-UNÇÃO.

III
MARIPOSA MORRE LANTERNA CHINESA SAUDADE QUERO MORRER TAMBÉM.
NA VITROLA TE RECUERDO AMANDA AINDA VIVO NÃO SOU MANUEL.

IV
LIÇÕES TERRÍVEIS SINTAXE ÁLGEBRA NOITE ANO NOVO ESTAREI AÍ.
SORTE NAS PROVAS CHAMPANHA FOGOS MANDINGAS MIL.

V
ESTOU EM HYDRA TOCANDO LIRA ENQUANTO ISSO VOCÊ NO INFERNO.
NÃO SE PREOCUPE CARNE QUEIMADA MAS AH QUE BÁLSAMO NO PEITO.

***
Fabulário
Ana Santos
Poesia
Confraria do Vento
2019

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