Por
Adriane Garcia
A velhice afigurou-se-me
repentinamente doce e harmoniosa.
Cícero
Diabos!, Catarata é a
constatação irrefutável da velhice.
Alê Motta
O livro Velhos,
da escritora Alê Motta, é uma coletânea com trinta contos curtos, todos
versando sobre o tema intitulado.
Em um
outro livro, o clássico A velhice, escrito em 44 a.C, Cícero fala
de um envelhecimento amparado pela filosofia e pela prática das virtudes, uma
velhice feliz, sábia, com temperança e contribuições à sociedade que só uma
vida experiente e sensata pode dar. Certamente, a velhice de Cícero é a
velhice dos sonhos, mas está longe de ser aquela retratada nos contos de Alê
Motta. Em Herança, por
exemplo, primeiro conto da coletânea, podemos conhecer este avô:
“Meu
avô é um velho inconveniente que faz todas as perguntas que não devia fazer nos
eventos familiares.
Além de
fazer perguntas medonhas, ele me encara e comenta que eu engordei, afirma que
minha amiga é sapatão, que eu nunca vou arrumar um emprego com o curso que faço
na universidade, mas tudo bem, porque sou um fracassado igual ao meu pai e fala
isso dando aquela risadinha sarcástica de quem está determinado a se meter.”
Se no
imaginário pode persistir a imagem de velhinhos fofos e inofensivos, é na
contramão que Alê Motta trabalha. Suas narrativas não fazem concessões e
seus personagens se contextualizam em uma sociedade em que, diferentemente do
que indica Cícero para sua época, velhos são desvalorizados e considera-se
que pouco têm a oferecer a uma sociedade como a brasileira, que despreza as
experiências do passado. Alê Motta situa suas velhas e velhos em um
lugar que não dá importância à memória, tanto é que nos contos em que os idosos
se encontram com adolescentes, ora são ridicularizados, ora são ignorados, já
que os jovens estão sempre com a cabeça baixa mexendo em seus celulares. Há exceções
como em Viagem, em que o avô aprende com o neto sobre aplicativos de
celular e marcas de chocolate ou em Festas, um conto no qual a família é
surpreendida com as ações do aniversariante de oitenta anos, afinal, não o
conheciam tão bem quanto julgavam.
Certamente
um envelhecer contemplativo é um privilégio. Nem mesmo um sábio poderia
considerar a velhice uma etapa leve, se estivesse na penúria. A máxima é
universal e atemporal. Dados recentes apontam para um aumento significativo do
número de idosos na população mundial. No Brasil, especificamente, para muitos
idosos, as políticas públicas ou são inexistentes ou insuficientes no sentido
de garantir a saúde e o bem estar psicológico e material dessa população. Em Mudanças,
Alê Motta levanta a voz de um desses muitos velhos do país: “Antes
era só deitar e afundar na velhice – minha e do meu colchão. Agora estou num
colchão que não é meu, dividindo o quarto com dois netos, na casa do meu genro,
que gosta pouco ou nada de mim.” Também em Encontros, além do tema
do relacionamento amoroso na terceira idade, a autora expõe a necessidade de
velhos terem que arrumar um emprego após a aposentadoria, ou por causa das
necessidades materiais ou mesmo por não suportarem o isolamento e a solidão.
No conto Desculpas,
o primeiro parágrafo traz a façanha de conter um capítulo inteiro da história
do Brasil: “Sou preto e sou velho. Diferente da maioria dos pretos no
Brasil, sou rico. Moro num condomínio sofisticado, num bairro de brancos que
acham muito esquisito a minha família preta morar ali.” O racismo
estrutural brasileiro também aparecerá em outras páginas.
Ainda que
tratando de uma temática que traz reflexões – e às vezes soluções – graves, Alê
Motta consegue fazer um livro de prazerosa leitura. Muito disso se deve a
um humor que sabe trabalhar com o absurdo naturalizado e a crueldade. Do humor
de Alê Motta rimos como se ri de um palhaço: rimos da queda (porque nós
mesmos caímos); e como o velho de Lucros, acabamos por concluir que é
melhor não nos levarmos tão a sério. Esse personagem tem setenta e sete anos, obesidade,
vários problemas de saúde e é filmado por um jovem quando, ao se pesar, quebra
a balança da farmácia. O andamento e o final desse conto são terrivelmente
deliciosos.
Temas
como choque de gerações, proximidade da morte, partilha de herança, Alzheimer,
suicídio, passados obscuros, abandono, estadia em asilos, velocidade do tempo,
novas tecnologias, tragédias familiares, palavras que ficaram por dizer, busca
por companhia, precariedade da matéria estão todos presentes em Velhos. No
livro de Cícero, ele classifica “quatro razões possíveis para acharem
a velhice detestável. 1) Ela nos afastaria da vida ativa. 2) Ela enfraqueceria
nosso corpo. 3) Ela nos privaria dos melhores prazeres. 4) Ela nos aproximaria
da morte.” Porém, Cícero oferece todos os contrapontos que
transformam as desvantagens em vantagens. Parece realmente uma velhice ideal, e
rara. Os velhos deixaram de habitar o reino ciceroniano para habitar o livro de
Alê Motta. Nos contos da autora, a resposta à vida é dada com gestos
desesperados ou melancólicos. Claro que também se encontra sabedoria nas
soluções dessas pessoas, mas é uma sabedoria pé no chão, como a de quem sabe
que há determinados problemas que só serão resolvidos com um assassinato – ou
com uma maratona de Stranger Things.
“Emoções
Tomei um
banho quente, escovei e ajustei a dentadura, penteei meus cabelos ralos e
coloquei o arquinho. Engoli os comprimidos da manhã, café com leite, pão e
requeijão. Escolhi minha roupa mais arrumada – saia marrom e casaquinho xadrez.
Fui para
a varanda esperar. Meu neto tem problemas com horário. Essa geração é muito
enrolada.
Vamos de
carro para a zona e meu neto dirige muito mal. Acelera-freia-desvia e eu agarro
no puta-que-pariu cinza-bebê do carro que ele tem porque eu cobri a metade das
prestações que o pai dele não pagou. Sim, meu filho tem problemas financeiros.
A geração dele também é enrolada.
Hoje é um
dia de ouro, muito especial. E esses garotos vêm com calças caindo nas bundas,
camisetas velhas-coloridas?, e essas garotas de
blusinhas-e-calças-grudadas-indecentes? Não há respeito.
Tenho
oitenta e nove anos. Cada passo que dou é lento, apoiado pela bengala que era
do meu finado marido. Todos falam que meu voto é desnecessário.
Vovó, na
sua idade não precisa...
Mãe, tem
certeza?
Vizinha,
os políticos não merecem!
Comadre,
pra quê esse sacrifício?
A senhora
tem quantos anos?, nossa!
Eu quero
votar. É meu direito. Lembro da época que eu queria e não podia. Só os homens
podiam.
Com meus
passos lentos entro na sala e cumpro meu dever cívico. Fico emocionada e quase
choro. Meu neto é um dos garotos com as calças caindo na bunda. Não fez a
barba, não cortou o cabelo. Mas segura o meu braço com delicadeza e de novo
estou com meu velhinho, que já mora com Deus no céu, viemos juntos votar, e ele
está tão lindo de terno, vamos seguindo de braços dados pelo corredor e todas
as mulheres olham para ele. Eu fico emocionada e quase choro.” (p. 31/32)
***
Velhos
Alê Motta
Contos
Ed. Reformatório
2020
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