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quarta-feira, 28 de julho de 2021

O Ausente, de Edimilson de Almeida Pereira

 


 


Por Adriane Garcia

 

O Ausente, romance que integra a trilogia Náusea, de Edimilson de Almeida Pereira, conta a história de Inocêncio, um homem que vive no meio rural e se torna o rezador e o curandeiro de sua comunidade por predestinação. Durante os partos, raramente acontece de o bebê nascer envolto pelo saco amniótico e, em alguns lugares diversos do mapa, desde épocas remotas, o fato é compreendido como um sinal de proteção especial, resultando em um símbolo de sorte ou da marca inescapável de curar. Inocêncio é um empelicado.

 

Em Ausente, no curto espaço de tempo entre o final da noite e a madrugada, Inocêncio reflete sobre sua vida e sobre uma decisão radical que deve ou não tomar. Entre o destino e as possibilidades que não viveu, entre a obediência e a desobediência, situa-se o seu mal-estar. Na cama, ao lado de Inocêncio, está sua companheira Djanira, a professora, aquela que lhe alargou o mundo e lhe mostrou que nem tudo precisa ser como é. Durante a leitura do romance, acompanhamos a insônia incômoda de Inocêncio, que não dorme porque está prestes a escolher. E escolher é também recusar.

 

É interessante notar que o personagem muda de nome durante o romance. Inocêncio é Inoc e é Esse de Agora – o nome muda porque o ser muda no tempo, seja porque lhe nomearam, seja porque ele mesmo se renomeia. Os nomes do benzedor revelam a transitoriedade de si e um sentido de metamorfose que perpassa toda a sua reflexão: a do devir. Inocêncio dorme um para acordar outro. No seu mundo marcado pela permanência, Esse de Agora talvez decida retirar-se da sua herança e se refazer, pois descobre, ao visitar o moribundo e transgressor Zé Vítor, que é possível transgredir e refazer a própria identidade, fora dos maniqueísmos. Inocêncio rompeu um pacto e a escuridão da noite se traduz na agonia de uma velhice que questiona sobre agir por conta própria, sobre fundar na ação uma declaração de liberdade, mesmo quando pareça tarde demais.

 

Narrado em primeira pessoa, ainda que em temporalidade condensada, o que Inocêncio mostra é um tempo largo, profundo, que visita mistérios e arquétipos, um ritmo que só é possível naqueles que se dão a observar a si mesmos e ao seu entorno. Esse efeito é conseguido por meio da linguagem que o autor utiliza. Edimilson de Almeida Pereira constrói narradores (Djanira também narra em determinado momento) que não nos enganam. Estão mesmo onde dizem estar e passam pela situação que descrevem. A língua que falam chega até nós porque há um exercício muito atento de escuta. É o homem e a mulher do campo, cuja sintaxe se aproxima da poesia. Assim, o autor conta para que o personagem possa contar:

Nós, pessoas em carne, osso e alumbramento, vivemos daquilo que nos contam e que nos arvoramos a recontar. Por isso, esses, aí chegando – um pai, a mãe e o seu filho deles – em muita carência, mas ajustados no seu transporte, merecem que os escutemos.”

 

Ausente é um lugar, é o nome da comunidade, mas pode também ser uma pessoa que se ausenta da própria vida. Pela linguagem, Inocêncio faz a sua revolução noturna: rememorar e contar seu auge e ruína, apresentar o antigo e o novo, desestruturar-se e mostrar seu mundo desestruturado, mas em busca de outra inteireza. Seu exercício noturno de reflexão aproxima os dois ofícios, o de curador e de contador de histórias, pois na cura a palavra tem espaço primordial. O ausente Esse de Agora é presente.

A fala de Djanira (a Deja, semeadora de livros, filha de um semeador de árvores) é feita de amor, crítica social, lucidez e resistência. Para ela, estudo é remédio. Djanira mostra a opressão socioeconômica que se abate sobre os mais vulneráveis, sem precisar localizá-la em uma cronologia exata, pois injustiça e violência existem desde que o mundo é mundo; tanto que podemos reconhecê-las imediatamente, nos dias de hoje, seja no medo das comunidades que vivem próximas às barragens construídas pela mineração – e que a qualquer momento podem destruir populações inteiras como se nem crime fosse – seja na ameaça perene de perder suas terras para fazendeiros que contratam milícias para abater os legítimos donos.

Aqui o ar é longo, as plantas crescem com argumentos. Crescem por gentileza, às vezes penso que deveria ser por ódio contra os senhores abancados em mesas na cidade, que atiçam o fogo contra nós – rios e matas e cavernas. Mas o Ausente é uma sorte, ermo apartado fora do mapa.”

Inocêncio, um homem que faz o balanço da sua experiência, busca um novo encaixe para aquilo que, sozinho, já não faz mais sentido. Sim, ele, um homem religioso, um homem feito para ser santo, desconfia dos homens santos e dos discursos religiosos, duvida do deus que lhe contaram e duvida até mesmo da simbologia de sua marca de empelicado. Se a tradição lhe dita uma essência, a liberdade a nega e prega uma existência.

 

Edimilson de Almeida Pereira, que também é pesquisador de culturas e religiosidades afro-brasileiras, traz para a narração de O Ausente, muito da escuta alcançada e registrada no seu livro de estudos antropológicos, Mundo encaixado, escrito com Núbia Pereira de Magalhães Gomes. A religiosidade tem papel central nessas comunidades e se entrelaça com todos os outros temas:

 

A vontade divina consiste numa determinação que delineia o desempenho humano, evidenciando-lhe a precariedade. A religiosidade popular tem na resignação uma resposta a essa determinação, mas trata-se de uma resignação que encontra no sagrado sua justificativa. A força divina, capaz de gerar o universo, dispõe de sabedoria para também gerenciar aquilo que criou. Desse modo, resignação e fé se completam, uma vez que à aceitação segue-se a possibilidade da recompensa.”

 

A insônia de Inocêncio vem questionar o primeiro e mais crônico aprendizado, até que contraposto a outros encontros – os da ciência (Djanira), os de uma filosofia rebelde (Anastácio – um teólogo sem religião), os do exemplo divergente (Zé Vítor). Corajoso, ele enfrenta as questões da identidade e se coloca o problema universal respondido de modo muito insatisfatório pelas religiões: o do livre-arbítrio. O Ausente é um livro bonito, poético e profundo sobre um auto resgate. E quando se conta uma história, sempre se pode também resgatar um outro.

 

EcceHomo fala quando não deveria, penso. Mas dispenso logo essa ideia. Eu mesmo não vim para tirar algo dele. Vim porque a ferida era minha. Não preciso de Deus, nem do seo-sem-nome. Careço de um emplastro de alma. Se eu não me quisesse iludir, iria eu mesmo buscar o assa-peixe. Punha no pilão e macerava com sal e gordura, para dar liga. Enfiava depois, por minha conta e risco, num saco de pano virgem e tatuava sobre a minha dor. Enquanto isso, liberava deus para ir no açude, escolher um caniço e soprar sua música.” (p. 83)          

***

O Ausente

Edimilson de Almeida Pereira

Romance

Editora Relicário

2020                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

domingo, 20 de maio de 2018

E, de Edimilson de Almeida Pereira




Por Adriane Garcia

Para falar do livro “E”, de Edimilson de Almeida Pereira, podemos começar pela bonita edição (ed. Patuá). O volume de 128 páginas intercala poemas com imagens do artista plástico Antônio Sérgio Moreira. As imagens, coloridas, vibrantes e fortes destacam, do corpo humano, a cabeça (orí).

Orí é também o primeiro poema do livro, se considerarmos que Oráculo: “para sair de tua morte,/ morre.” é a abertura de “E”, a sua apresentação, enigma sob o qual a linguagem se pronunciará.

Poesia de grande refinamento, feita com técnica, burilamento e inteligência, Edimilson alia esses predicados a uma sensibilidade direcionada principalmente para a solidariedade. A poesia de “E” está falando ao outro, está de mãos dadas com o outro; não por acaso, muitas vezes, levanta questões da ética e da política, notadamente, as que se relacionam com o racismo, a diáspora africana, o genocídio da população negra brasileira.  A forma como desloca seus vocábulos provoca ambivalências que só enriquecem a leitura, numa dança de sentidos:

                 DAN

não    me     preocupar por mim
                                         letal

não  me preocupar com o outro
                         que há em mim
                                        igual

não  me preocupar com o outro
                                      imoral

não   me  preocupar   com o eu
que espera no outro – um sinal

Orí, a cabeça, a mente, a inteligência, rege o desenvolvimento de “E”. O poeta evoca a linguagem como fenômeno vital para nos fazer humanos e também para nos deixar à deriva, nossa condição de conflito. É pela inteligência, pela capacidade de linguagem que o poeta chama à autonomia do sujeito, à defesa de uma identidade única e particular, contra todo sentimento de manada. “E” é letra de um rito de origem, o primeiro sinal gráfico para o poeta se iniciar na escrita do próprio nome: Edimilson. O ato de escrever é ato de libertação e resistência, feito com ciência e fúria. A palavra (a poesia de Edimilson), como o metal, é moldada na forja, sob intuição, fogo e arte, mas é preciso, e ele mesmo nos mostra, mais que técnica: é preciso dar a ver ao leitor algo que já há no poema, mas que só o leitor poderia acrescentar; algo que só existe quando o leitor declara para si sua existência. Não só o “logos”, mas o “punctum” conceituado por Roland Barthes, o ponto que fere e punge, alegra e anima. É a própria subjetividade do leitor, pessoal e intransferível, naquilo que o toca, que trará ao poema seu maior sentido. Desse modo, o poema é também doação.

 “Ouve ainda a voz
do mor-
to: “dai a cada um
a sua altura.”

As chaves de leitura dos versos de “E” se ampliam, na medida em que o autor sabe usar o poder da sugestão. Os poemas, em sua maioria, dizem de um ser inteiro, integral, que não abre mão de sua singularidade. A adversidade aparece inúmeras vezes, acompanhada dos signos da luta: língua, apneia. Seus temas são os temas mais variados que ocupam seu mundo, seu tempo, sua ancestralidade africana: a poesia, a música, a amizade, a saudade, o sentimento de ser estrangeiro,  voduns e orixás, desigualdade social, exploração, discriminação racial e de gênero, a tensão que é viver consciente, compreender essa condição de ser aquele que duvida.  

Recorrentemente, aparece nos poemas de “E” a reflexão sobre o significado da palavra em nossas vidas. Essa valorização faz com que o leitor possa depreender que também há, nos poemas de Edimilson, uma exigência pelo direito universal à palavra e à voz, como condição primeira para a liberdade.

Um livro excelente, de muita beleza.

Língua

Um cão divide a praça

: às suas costas
Um câncer       o trópico

: à sua cabeça
Um laser          o espólio

Um cão decide a praça

: em seus ossos
e cérebro

: em sua carne
e raiva

apneia – a flor do lácio

Cantilena

O ofício da mulher antiga
era ser avó toda manhã.
E o nosso era fingir
que não queríamos, não

sua mão em nossa cabeça.
O ofício por ser antigo,
tecia a cada manhã,
a mulher e seu vestido.

E nós, entre a nesga
da infância, ao desamparo,
cedemos aquela manhã.
No entanto, a inquice

vestida à dureza bruma,
flutua entre os cardos: nós
já nem fingimos
a fome de seu abraço.


Oráculo

O que é
do meu entendimento

se enerva, pulsa
rompe

a saliva.
Fora de si se atreve:

expulsá-lo
é colocá-lo dentro

da vida.
Esse o roteiro,

a promessa.
Colocar-se vivo

onde nos imaginam
a ferros.



***
 E
Edimilson de Almeida Pereira
Poesia
Ed. Patuá
2018