sábado, 7 de outubro de 2017

Escrevo ao vivo, de Anízio Vianna




“(...) O meu agora é mais eterno que este minuto. Guarda a melhor tempestade. Não funciona um guarda-chuva. Eu sou o que você não leu.” ( p. 246)

Há alguns dias estive fisgada por um livro. É o Escrevo ao vivo, de Anízio Vianna. O livro, que traz 264 páginas, volumoso, em geral, para uma coletânea de poesia, me surpreendeu porque dá conta da quantidade, com qualidade. É livro de pegar e só largar no final; embala, leva, encanta. Há nele contundência, beleza, fina ironia, um tipo muito especial de fé e empatia enorme.

Anízio consegue fazer uma poesia descomplicada, abordando temas sérios, de maneira profunda; dando conta do mundo com suas inúmeras referências. Ao utilizar principalmente as notícias de jornal como motor para a escrita em Escrevo ao vivo, Anízio reporta ao leitor acontecimentos atuais, mas, antes, passa-os pelo filtro da poesia. O resultado são poemas que tratam, por exemplo, de política, sociedade, religião, religiosidade, violência, violência policial, amor, machismo, racismo, desigualdade, compaixão.

A maioria dos poemas traz um número de referência, que ao fim do livro leva o leitor à notícia que o desencadeou. O livro de Anízio Vianna, assim, além do exercício delicioso de ler poesia, nos dá o exercício da revisita, um convite sublinhado para a reflexão e apela para nossa memória, tão fragilizada em tempos de excesso insano de informações.

É ainda de se notar, na forma, a força da musicalidade nos poemas de Escrevo ao vivo. O ritmo privilegia a leitura em voz alta e, muitas vezes, me peguei falando poemas que quase me vinham como uma espécie de rap.

Com uma consciência social agudíssima, inteligência, riqueza de leituras e uma sensibilidade tão necessária para a poesia, os poemas de Anízio Vianna conseguem um ataque coordenado: cérebro e coração. O leitor, atordoado, só quer ler mais. Poesia com o pé no mundo, que aprendeu uma das lições emocionadas do grande Drummond. O tempo presente, os homens presentes, a vida presente é a matéria de Anízio Vianna.


À D. ELOIZA

Faço um poema p’ra me despedir do mar.
O mar não entende pedidos nem o aço das pedras.
Sente que sou da montanha e que ainda estou às margens
do Rio Arrudas, lugar onde nasci e hoje infância.

Vila Esplanada:
presídio  de mulheres, enchentes constantes.
Minha mãe me tirou de lá com suas mãos grandes – de calos e reentrâncias –
contra minhas mãos pequenas e lisas de professor.

Cumpriu à risca o fardo de fêmea:
pariu meu irmão e eu.
Porém, não rompeu a lógica das estatísticas.

Saiu de São João de Manteninha aos dezoito sem letra
com suposta data de nascimento na cabeça.
Desceu na Rodoviária Governador Israel Pinheiro,
Praça Rio Branco, sem número
e ainda sob efeito do êxtase da cidade de Belo Horizonte
descarregou as malas,
tirou certificado,
identidade,
carteira de trabalho
e completou seu êxodo.

Esboçou primeiro sorriso
diante do êxito de cruzar destino quase ilesa:
com calos e reentrâncias nas mãos.

O médico diagnosticou
alergia aos produtos de limpeza,
leve tristeza e hipertensão.

Vila Esplanada:
presídio de mulheres, enchentes constantes.
Minha mãe me tirou de lá antes da verticalização
das favelas.

Ela segue sem religião,
mas com uma fé abrupta ora ao Senhor.
Não sei se com fervor ou um ódio apaziguado
pelo excesso de amor.

Não sei se com alegria
ou consternada
pelos dias em que foi maltratada lavando chão.

Já freqüentou a Igreja Universal do Reino de Deus,
o Vale do Amanhecer,
as Católicas
e Seicho-No-Ie.

Descobriu que deus não mora numa sacada,
não gira em torno de uma órbita
e que, vez ou outra,
Ele irrealiza os nossos desejos.
(p. 208-209)

***
Escrevo ao vivo
Anízio Viana
Poesia
Quarto Setor Editorial

2016

2 comentários:

  1. Gostosa e estimulante resenha, Adriane. Fiquei com muita vontade de ler o livro, do qual já conheci outro poema. Parabéns Anízio Viana!

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  2. Adorei, Adriane, a resenha e o poema, que instiga a querer mais. Um abraço.

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