Por Adriane Garcia
Anticorpo:
proteína específica produzida como defesa contra aquele que a despertou, parte
do sistema imunológico. Em si o prefixo do “contra”. Sem o anticorpo, o corpo
está indefeso. Anti o corpo específico,
defesa deliberada e calculista. O título escolhido por Bruna Kalil Othero para
o seu livro convida-nos a repensar o sentido da palavra e do corpo. Mais
especificamente, convida-nos a pensar o corpo feminino, sem deixar de lado (e
como poderia?) todo o ataque que esse corpo sofreu e sofre no decorrer de
milênios.
Com 122 páginas, Anticorpo é dividido em duas seções: Da cintura pra cima e Da
cintura pra baixo. Na primeira parte, os poemas trabalham a temática do corpo,
da mulher e do amor, mas sem a ênfase direta na relação sexual. Na segunda
parte, a relação sexual aparece mais explicitamente, como objeto do poema.
Tanto na primeira quanto na segunda parte, o tom é libertário, utilizando-se da
reflexão, por vezes do humor, para situar uma mulher que, de posse do próprio
corpo, toma a posse da palavra. Nos poemas de Anticorpo, que inclui alguns poemas metalinguísticos, corpo e
palavra estão intimamente ligados. É pela palavra que o corpo se inscreve e
escreve e é no corpo que a história pessoal é inscrita e escrita, numa espécie
de corpoema. Não por acaso, Anticorpo
começa com Em tuas mãos, onde o livro é a prova em tinta (sangue) da continuidade
do corpo dos pais no corpo (livro) da poeta. E logo mais, em Mátria, o corpo se
apresenta como lugar de registro da ancestralidade. O corpo da filha repete o
corpo da mãe e, de certa maneira, guarda-o.
Coletânea que funciona muito bem,
Bruna Kalil Othero conseguiu trazer ao leitor um projeto coeso onde um poema
fortalece o outro, oferecendo possibilidades de leitura do mundo e das relações
pelo viés do corpo feminino. A poeta utiliza a persona poética para denunciar
sobre este corpo que não tem seu direito de ir e vir garantido, pois não pode
se locomover nas ruas com segurança (sim, estamos falando de assédio e
estupro); para refletir sobre as relações amorosas quando tantas vezes o outro
acaba sendo o antígeno; para dessacralizar imagens criadas a fim de manter
mulheres sequestradas de seus próprios corpos. Não à toa, são recorrentes nos
poemas de Bruna a masturbação e ejaculação femininas e o poder do prazer
autodirigido. A mulher de Anticorpo é
uma mulher forte e senhora de si. Em Soneto do final feliz, Bruna, de modo
sagaz, constrói um poema onde a vingança é finalmente falar, descrever de modo
apenas permitido e naturalizado a um homem. No próprio título, o deboche remete
aos contos de fadas, onde mulheres são sempre princesas frágeis esperando
príncipes encantados. Bruna ainda faz isso no único poema do livro que se
utiliza de uma forma clássica, porque o poema todo quer profanação. A mulher
desse soneto não espera mais o homem, dona do próprio gozo, comprou um vibrador
e, liberta, foi ser feliz. Noutro poema, Striptease, Bruna trabalha com a
desautomatização do nu, brinca com a expectativa do leitor: faz esperar uma
coisa e dá outra.
Sempre aprecio a poesia que tem algo
a dizer. Entre tantos temas trazidos à luz da carne, Bruna, sem pudor, e amante
da forma, anuncia o que a experiência de ser acrescenta à arte. Por tanto tempo,
bordões ligavam as mulheres àquilo que, misterioso, não se podia entender.
Óbvio, não é possível entender aquele que não pode dizer de si; não há qualquer
predisposição para se entender quando não se quer ouvir. Anticorpo grita que a
mulher não aguarda permissão, diz de si e diz do outro, do seu lugar. E o primeiro
lugar é o corpo.
Na contramão da gravata
célebre imortal maravilhoso branco
me bate
uma vontade de ser
sujeito lírico neutro
infectado por aquela visão tão objetiva
& masculina
porque se eu
fosse
raimundo
mas antes
sequer
de terminar o raciocínio
meu útero
bate na porta:
esse mês
não
Cara-metade
diz a ciência
que para cada antígeno
há um anticorpo
específico-
complementar
que o destrói
nos completamos
você me disse
antes
mas fica a dúvida
quem
foi
qual
Anticorpo
cura
mas já feriu
fere
mas se reflete
reflete
mas não existe
não existe
mas ilude
ilude
mas encanta
encanta
mas perfura
perfura
mas desaparece
desaparece
mas já curou
***
Anticorpo
Bruna Kalil Othero
Poesia
Ed. Letramento
2017
Que leitura incrível, atenta, delicada. Obrigada por me dar a honra de ser lida por você. <3
ResponderExcluirHonra minha também ser sua contemporânea, poder ler um livro como esse, corajoso, que conseguiu ser político sem ser panfletário, que conseguiu ser forma, arte e palavra.
ExcluirGostei de deu poema anticorpo pelo jogo de palavras. O movimento é criativo e me aguçou a atenção. Não conhecia ainda o seu texto. Quero ler mais sua poesia erótica.
ResponderExcluirSou cronista e poeta da geração de 70. Estou no Facebook onde escrevo uma coluna intitulada Chão de Praça.
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