Por Adriane Garcia
Termino de ler o livro de contos Cavala (ed. Record, 2010), de Sérgio
Tavares. Livro que li sem pausa e que, imediatamente reli. É que não dá para
ficar com o pesar de, talvez, ter perdido algo no torvelinho em que ele nos mete.
O livro, de 96 páginas, é composto
por quatro contos, dos quais o primeiro, “Cavala”, ocupa 58 delas. “Cavala”
conta a história de uma modelo internacional que, após ter vivido uma carreira
de sucesso, sucumbe à anorexia e bulimia e, depois de várias internações
psiquiátricas, vive sob os cuidados dos pais. Na sequência de um acidente nas
passarelas, da doença e do tratamento terapêutico, a protagonista adquire um
transtorno obsessivo compulsivo em altíssimo grau, em que por meio dos números,
somas, divisões, subtrações, multiplicações e medidas, procura alcançar o
equilíbrio de não permitir que seu cérebro dê espaço para pensamentos e
lembranças ruins. Assim, ela sabe, por meio de associações, que se avistar um
carro vermelho, terá que avistar, em seguida, um carro amarelo para a conta
zerar e alcançar o equilíbrio. Só isso faria um dia ruim (o carro vermelho) se
transformar num dia bom (o carro amarelo), ou no caso de ver dois carros
vermelhos, teria que ver, em seguida, dois carros amarelos; se a conta não
zerar com as cores dos carros, será preciso zerar com as placas dos carros, de
modo que alguma conta matemática resulte em zero com os números das placas. Se
a personagem não consegue esse zero, ela se desespera e se desequilibra.
Totalmente. O leitor dentro da cabeça dela.
Acompanhar a protagonista de “Cavala” é uma experiência literária interessantíssima com final surpreendente. Sérgio Tavares nos leva em companhia da loucura, tão perto que podemos tocá-la com a mão. Justamente na busca obsessiva por equilíbrio, valor de salvação que dá a ele quem o perdeu, é que se o perde novamente. O círculo vicioso, espiral infinita, dolorida e sôfrega de uma viagem muitas vezes sem volta, onde um ser humano tenta segundas chances que nunca se viabilizam. “Cavala” é asfixiante e claustrofóbico, uma oportunidade para leitores corajosos, que gostam de visitar prisões onde não se enxergam as chaves.
O segundo conto é “Fome”. Nesse
conto, a compulsão da protagonista é por sexo. Aqui, também, o descontrole, a
consciência do desequilíbrio e uma espécie de desistência de vencer a compulsão.
Diferentemente de “Cavala”, cuja protagonista crê que obterá sucesso no
autocontrole, em “Fome” a protagonista admite sua falta de forças. No limite,
traz um mendigo do lixão (personagem que também aparece no primeiro conto) para
dentro de seu quarto, para a sua cama. Todos os personagens deste livro estão
expostos a perigos, violências e ambientes marcados por sujeira e excrementos.
Em “Sobre a pélvis”, o narrador é um
homem, homossexual, voyeur, faxineiro de um banheiro público onde realiza o
desejo de ver homens urinando e imagina outras fantasias. É também com os
clientes no banheiro público que consegue algumas relações sexuais. Diferentemente
das protagonistas de “Cavala” e de “Fome”, o protagonista de “Sobre a pélvis”
narra sem se preocupar com a questão do controle, mas assim como as outras sabe
que está numa situação da qual não consegue sair: “sinto-me sórdido como um escravo tigre. prisioneiro deste cárcere de
louça encardida, arquitetado para o despejo de necessidades fisiológicas,
esguicho, agacho, escovo e lavo, cumprindo a pena que eu mesmo me sentenciei.”
O último conto do livro é “Papel de
cão”. Conto instigante, no qual o leitor não encontra fuga. É preciso aceitar o
que o adolescente morador de rua relata. Só há mesmo o seu relato. É o relato
de uma vítima, de um algoz e de um louco. Em “Papel de Cão”, Sérgio Tavares nos
dá a fala de um adolescente abusado sexualmente por um pedófilo. O protagonista
de “Papel de cão” é retirado das ruas, de vez em quando, para atender ao doutor
Ivone. Desde o começo do conto sabemos que o menino possui um cão e que este
cão (imagem de uma revista que ele recorta e mantém no bolso) é imaginário e,
ao mesmo tempo, um alter ego onde se retrata violência e animalidade.
Diferentemente dos outros três protagonistas, em “Papel de cão”, o narrador não
apresenta nenhuma fresta de consciência sobre o processo que vive, sendo a
realidade em que acredita a única realidade que conhece. Talvez por isso ele
seja extremamente perigoso, porque não há um embate entre suas duas personas,
porque sua esquizofrenia considera acordos pacíficos entre ele e o seu cão.
Cavala é um
livro de contos primoroso em seu conjunto. Sérgio Tavares acerta com exatidão o
nome do conto homônimo e o nome da coletânea. Assim como Cavala é tanto palavra aviltante quanto grandiosa, também pode nos
remeter a cavalo, o nome utilizado em algumas religiões e seitas de base
espírita para designar aquele que recebe o espírito, a força que vem de fora,
alienígena ao mundo trivial, normal. Os personagens de Sérgio Tavares estão
todos possuídos por uma força que não controlam e que lhes aparece como algo
que não define a sua totalidade. Quem vem por essas páginas acompanhando-os de
dentro de suas cabeças sabe que eles, os que contam, são algo mais que apenas estes
que agem.
“certa vez, acordei e não conseguia
encontrar o caderno. revirava tudo e os lençóis e não conseguia encontrá-lo. os
movimentos bruscos começaram a me esgotar e, sem as páginas para me dizer o que
pensar, fui ficando tonta: mareando meus olhos em imagens afogadas que me
dobravam e vomitei.
lembro que era só gosma, uma espuma
amarelada e amarga sendo chupada pelo carpete já que eu não comia havia...
algumas horas?, mas que me trouxera um alívio tremendo, uma clareza mental
inigualável que, segundos depois me permitiu encontrar o caderno logo ali.
depois disso, comecei a vomitar muito. vomitava para obter descanso, me sentir tranquila,
evitar que qualquer mal me atingisse e que essa borra de pensamentos
imperfeitos e anseios se avolumasse e ganhasse corpo – o meu corpo.” (Cavala, p.
26 – 27)
***
Cavala
Sérgio Tavares
Contos
Ed. Record
2010
bravo!!
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