Por Adriane Garcia
O romance Cloro (Cia
das Letras), de Alexandre Vidal Porto é narrado em primeira pessoa pelo advogado
Constantino. O narrador, já falecido, não sabe bem em que lugar da eternidade se
encontra. A partir de seu estado de “morto”, Constantino procura passar a vida
em “revista”. Sem as amarras morais a que as convenções da sociedade obrigam,
nada mais precisa ser fingido ou ocultado, afinal, mentir só faz sentido para
os vivos. É então que Constantino terá coragem de contar sobre sua homossexualidade
e como se deu a sua construção de homem heterossexual e homofóbico.
Como no romance
anterior de Alexandre Vidal Porto, Sérgio Y. vai à América (Prêmio Paraná de
Literatura, Cia das Letras), a escrita é direta e clara, o ritmo de frases
curtas cadencia a narração. A inesquecível cena que revela a razão do título do
livro é de um erotismo belo, fino e sutil. O interesse do leitor em Cloro é
mantido do princípio ao fim; em capítulos curtos, muito bem costurados, o autor
dá, aos poucos, os eventos que explicam Constantino e sua morte obscura,
misteriosa para o leitor até quase o fim do livro.
É na infância que
acontece a ruptura entre o que Constantino é (ser) e o que Constantino irá se
tornar (estar). Um evento secreto e traumático de viés homofóbico, cometido por
seu colega de escola, Marcos Bauer, traçará a linha que Constantino definirá,
aos oito anos, como divisória entre a espontaneidade da criança, que simplesmente
sente, e a performance limitada, do macho adulto que finge, com medo de ser
descoberto.
A partir dos oito
anos, Constantino estará na vida como quem está permanentemente num palco, atuando,
sem descanso, para não ser pego em flagrante. Na rota de fuga, todo o aparelhamento
do homem hétero bem-sucedido, uma espécie de kit-homem-de-bem: sucesso profissional,
casamento, família, aceitação social e bastante afirmação de masculinidade, com
pitadas de homofobia: “Nunca hostilizei
ninguém cara a cara. Não me considerava homofóbico, mas participava de piadas e
levantava suspeitas condenatórias contra possíveis homossexuais. Acho que devo
ter vergonha disso, você concorda?” Obviamente, o que este narrador nos
traz é uma vida triste, premida pelos ditames do patriarcado, camuflada, que
envolve filhos e amores não vividos. Ser infeliz é também fazer infeliz.
Um segundo evento
traumático, agora na vida adulta de Constantino, causará uma reviravolta, quando
ele começará a fazer um raio-X de suas relações e um princípio de mudança.
Cloro é um livro
interessantíssimo e corajoso, que traz um personagem crucial para a nossa
reflexão, aquele que, impedido de ser e exercer a sua sexualidade, participa de
um mundo triste, de tanta violência e engano. A negação e a dor de Constantino
oferecem o retrato de uma sociedade que prefere enrustir e anular, quando a
vida é curta e talvez não haja tempo para ser feliz, se gastamos todas as horas
com o que esperam de nós. Haverá tempo para alguma realização sexual e amorosa
genuína de Constantino? O leitor torce por ele, mas o autor, assim como as vidas
mal vividas, é impiedoso.
“Os avós de Débora haviam sido pioneiros no
Jardim Virgínia, no Guarujá, e tinham uma casa grande na esquina da avenida
Atlântica com a rua do canal. Durante nosso namoro, passamos vários feriados nessa
casa.
Quando isso acontecia, eu dividia quarto com o meu cunhado Sílvio,
irmão único e mais velho de Débora. Esse quarto que ocupávamos – “o quarto dos
rapazes” – era na verdade uma garagem convertida em dormitório adicional.
Ficava separado da casa, do lado de fora, com acesso independente.
O quarto tinha dois beliches de madeira, uma cômoda e um pequeno
armário perto do banheiro com azulejos azul-celeste e um chuveiro elétrico que
sempre dava defeito.
Sílvio era cinco anos mais velho do que eu. Na época em que dividíamos
o quarto mais frequentemente, ele começava a explorar sua vida adulta. Dirigia,
bebia, saía à noite. Nem Débora nem eu ocupávamos muito de sua atenção. Ele não
era rude, mas pouco falava conosco. Tinha coisas mais importantes para fazer.
Sílvio e Débora acabaram ficando muito mais próximos ao longo dos
anos, sobretudo depois da doença dos pais. Já eu nunca consegui desenvolver uma
relação espontânea ou íntima com o meu cunhado.
A culpa terá sido minha, porque acho que não desenvolvi relação íntima
ou espontânea com ninguém. É difícil ser espontâneo quando se tem medo. Como
ser íntimo quando a intimidade é o que mais apavora você?” (p. 33/34)
***
Cloro
Alexandre Vidal Porto
Cia das Letras
Romance
2018
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