sábado, 19 de janeiro de 2019

Exercícios de fixação, de Antônio LaCarne




“Para que então ter um corpo se é preciso mantê-lo trancado num estojo,
 como um violino muito raro?”
 (Katherine Mansfield, em Bliss)


Por Adriane Garcia


O livro Exercícios de fixação (Publisher Editora), de Antônio LaCarne, é composto por dezessete contos. No primeiro deles, Cair demais, o narrador cita Katherinne Mansfield, mais especificamente seus personagens Bertha Young e Srta. Brill. Chamam a atenção as duas personagens citadas porque os temas que aparecem nesses contos de Mansfield (Bliss e Mrs. Brill), são os que atravessam não só o primeiro conto de LaCarne, como os demais de alguma forma. Com Bertha Young critica-se a ordem estabelecida, expõe-se o desejo que arde, cujo êxtase transborda amor e erotismo, mas tudo é mudez e nada se realiza. Com Srta. Brill, penetra-se na solidão, na inadequação e na invisibilidade que ela sente e só ao leitor comunica. Assim como Mansfield, LaCarne conhece o monólogo interior de seus personagens.

Jorginho (Cair demais) é o jovem que, indo a uma festa, sem franca vontade, se vê às voltas com seu “precipício existencial de dúvidas”. A vida lhe parece sem sentido, a “caçada” lhe parece sem sentido, assim como o sexo pago, do qual acaba por se arrepender. A solidão acompanhada é a presença constante e o personagem se debate entre ser ele mesmo e fazer o jogo social. Por fim, um evento inusitado mostra a Jorginho que o homem que ele deseja e de quem sente inveja pode também ter o seu próprio “precipício existencial de dúvidas”.

Em Shangai não me espera o personagem chamado “O príncipe selvagem” antagoniza a alcunha com seu modo de vida, nada selvagem, tão domesticado; LaCarne, com fina ironia, revela as vidas monótonas enquanto não decidem realizar seus desejos. Tal monotonia é quebrada pelo narrador em primeira pessoa de “Enquanto eu lia Balzac”, já que as contingências da vida, a “troca de olhares que me impediu o sono e a leitura dos meus romances policiais favoritos”, modificam ao menos os estados de espírito. É então que chegamos a Arlete no vazio.

Arlete no vazio é um dos pontos mais altos deste Exercícios de fixação; talvez porque neste conto o livro encontre a confluência do conjunto. A mulher velha, cujo tempo passou sem que se desse conta e que, agora, tarde demais, deseja o cumprimento impossível. Arlete é, sozinha, um poço de lembranças. Cuida da rotina diária como quem cumpre um calendário de condenação, pois a vida sem amor é sempre condenação, e ainda há um corpo vivo. LaCarne dá a Arlete uma complexidade riquíssima, o que torna sua verossimilhança assustadora. A imagem de uma mulher que se dedica à casa (fuga) como um cachalote em seu mar é poderosa, e o conto se realiza em beleza e potência.

Em A aranha, LaCarne explora sua capacidade de nos levar ao inusitado. Um casal está na cama transando, enquanto uma caranguejeira talvez trame um ataque. De parágrafo em parágrafo, LaCarne surpreende o leitor. O leitor tece um caminho que é logo traído, e assim até o ótimo final. Em seguida, o livro apresenta O homem de Higienópolis, conto engraçadíssimo porque a reiteração do narrador de que aquele fato não aconteceu consigo, mas com seu personagem, leva o leitor à desconfiança de que foi sim o narrador que levou o garoto de programa para o banco traseiro do carro. Finalização também inusitada.

Em Os gatos, LaCarne presta sua homenagem a estes seres sempre dignos de homenagens, e explica bem o porquê. À pureza e sinceridade dos gatos, o autor opõe o desajuste e a falsidade humana. Já em Boneca come-come, o personagem, aparentemente homem acima de qualquer suspeita, decide se comprará ou não um raticida para matar uma pessoa, um segredo que esconde outro.

No Encanadores não desentopem enganos, o protagonista e o encanador se entregam ao sexo e ao amor possível, ali mesmo, sem aviso prévio e sem referências, a paixão no escuro. Neste conto, LaCarne usa recursos de prosa poética, metáforas que tornam o texto muito bonito e tocante, conseguindo ampliar o sentimento de solidão dos personagens, mas vou abrir um parágrafo específico para o conto Lápis de cor:

O título Lápis de cor é mais um exemplo de como LaCarne sabe “trair” o leitor. Espere que lápis de cor evoque tudo o que lhe evoca e, certamente, será traído. Aqui, LaCarne conta a história de Guto, o menino de sete anos que sofria calado na escola. “Criança viada”, bolsista filho de mãe empregada doméstica, Guto passou pela crueldade do preconceito de classe e da homofobia, juntos. O conto, além de revelar características abjetas de nossa sociedade nos leva a uma empatia imediata com Guto, fazendo com que o leitor compreenda sua drástica medida de defesa.

Em Dias de promoção, um homem se pega a pensar alto na seção de hortaliças e legumes de um supermercado. Sua frase “onde estão os pepinos?” desencadeia a reação de um garoto e a reflexão do protagonista. A pergunta seria notada se quem a fizesse não estivesse na contramão da normatização tradicional dos gêneros? O garoto teria notado se para ele também a situação não estivesse sob o estigma de uma sociedade homofóbica? Em um conto pequeno, simples, de algo cotidiano numa terça-feira e, a princípio, sem qualquer importância, LaCarne consegue mostrar o que “paira no ar” todos os dias.

No conto A baleia, mais um personagem tocado pela invisibilidade. O encontro com a baleia, encalhada na praia, funciona como uma epifania, em que a vida e a morte do protagonista se confundem com a vida e a morte da baleia. Dizem os que quase morreram que nossa existência nos passa como um filme nos últimos minutos. Essa é a experiência do protagonista que, imiscuído na possível morte do cetáceo, olho no olho, se revê em infância e abismo.

Em Extraterrestres, o autor trabalha também outra recorrência: a de que não há sinceridade, a de que o mundo é de convenções e falseamentos das vontades. “Só os extraterrestres são sinceros”, ele avisa, e constrói um conto em que um homem, com um sorvete na mão, aguarda o outro que não vem. Enquanto espera aquele que “não reinventará o desejo de compensar o atraso com um abraço extra, um sorriso extra, um pau duro extra”, repara todo o ambiente e as pessoas ao redor, e essa observação se mistura aos seus sentimentos, fazendo do que era relato realista uma metáfora do mundo interior.

Ocultismo é mais um conto com um humor melancólico delicioso. O narrador tenta escrever uma história que envolve magia e comunica isso ao seu interlocutor, mas acaba desistindo e pedindo conselhos sobre sua vida amorosa cujo estado chama de “solteirice alarmante”. Estrabismo alucinante, o conto na sequência, traz um personagem que agora começa, felizmente, a aparecer mais amiúde na literatura do país, mas que é tão comum na vida real. Os homens casados, os chamados “homens de bem” acima de qualquer suspeita, que praticam sua homossexualidade às escondidas. LaCarne narra com grande sensibilidade essa história de amor em que um homem pergunta ao outro “Você quer mais?” e é tudo que se quer, mas no reino do impossível. Um conto lindíssimo em que a insistência na frase “Forcei todas as barras possíveis” consegue o efeito de penetrar no urgente desejo de amor do narrador.

Em Crise de insônia, a morte de um amigo e a prisão de outro desencadeiam um estado de torpor no narrador: “Eu queria algum acontecimento sem urgência, algo de que eu pudesse tomar conta sem insônia”. O conto mostra a dificuldade de se relacionar com um mundo cheio de vicissitudes e o papel da rotina como amortecedor de tragédias pessoais.

No último conto do livro, Pênis gigantesco, um morador de rua exibe orgulhoso seu pênis gigantesco, seu único e valioso bem. A vizinhança já parecendo acostumada, ou mesmo admirada de poder ter tal monumento pelos arredores, deixa o mendigo por ali, oferecendo até comida. Porém, num determinado momento, ele é denunciado à polícia por uma mulher. É interessante que LaCarne está menos preocupado com o fato do que com a motivação. Aqui, mais uma vez, a luz é lançada para fazer suspeitar das motivações.

Exercícios de fixação é um livro em que os personagens, na sua maioria, estão fora da heteronormatividade. Para além da denúncia de uma sociedade hipócrita e que promove muito sofrimento via preconceito, os contos de LaCarne trazem os temas universais do amor, da solidão, do deslocamento, da morte e da liberdade. Seus personagens estão na experiência da incompletude, como se pedissem um tanto de compreensão. Essa que, no fundo, todos nós pedimos. Há um destaque para a libertação do corpo, esse primeiro lugar de poder, negado desde cedo. Mesmo não alcançando a plenitude de seus desejos amorosos, os corpos, nos contos de LaCarne experimentam, buscam a reiterada sinceridade.

Se os exercícios de fixação são aqueles que nos fazem aprender, pela repetição, uma lição, LaCarne acerta bem no título, sem ser em nada repetitivo. É a vida que está, reiteradamente, dizendo algo aos seus personagens. Seus personagens estão, reiteradamente, dizendo algo para nós. Nada deveria ser tão caro, tão inacessível: “A vida em si poderia estar em promoção”.



Ele (que não sou eu) percorria o centro da cidade de madrugada em busca de rapazes que pudessem satisfazer o seu desejo. Cada quarteirão era delimitado: havia as esquinas das travestis e as esquinas dos garotos de programa. Mas ele (que não sou eu) dirigia seu carro lentamente, numa caçada, muitas vezes andando em círculos, em busca do rapaz ideal. Nem sempre ele (que não sou eu) explorava o prazer da noite sozinho, tinha um casal de amigos como cúmplices. Ao abordarem os rapazes, ele (que não sou eu) tomava a iniciativa de perguntar o preço, o tamanho e se poderiam exibir o que existia dentro de suas cuecas. O casal de amigos permanecia em silêncio, talvez controlando o desejo, observando discretamente se alguém ao redor se aproximava, pois a cidade era perigosa. Porém, ele (que não sou eu) nunca se decidia por nenhum rapaz, apenas se contentava em vê-los sem roupa por alguns segundos, desesperados por dinheiro. Muitos recusavam qualquer amostra grátis de suas qualidades específicas, pois exigiam algum pagamento prévio. Então uma bela noite, ele (que não sou eu) abordou um homem por volta dos trinta anos que dizia ser de Higienópolis. A maneira como ele falava e a ênfase na informação desnecessária porventura evidenciaria isso, mas o interessante era que a voz daquele homem era extremamente sexy. E ele (que não sou eu) convidou o homem de Higienópolis para o banco de trás. Quem dirigia o carro era o casal de amigos, um no volante e outro no banco do passageiro. No banco de trás o homem de Higienópolis tirou a camisa, baixou a bermuda de nylon e se deixou ser manipulado ali mesmo. Mas ele (que não sou eu) antes de atingir o êxtase, lembrou que durante toda a sua vida havia esperado por um grande amor, independentemente de qualquer dote físico, e que aquilo era um exemplo gigantesco de hipocrisia íntima. O programa foi encerrado ali mesmo, e o rapaz de Higienópolis saiu alegre e satisfeito ao receber uma nota de vinte reais de um otário (que não sou eu) por menos de três minutos de trabalho.”
(O homem de Higienópolis, p. 35/36)


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Exercícios de fixação
Antônio LaCarne
Contos
Publisher Editora
2018

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