sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Da existência enquanto gato – de André Ricardo Aguiar




Por Adriane Garcia


Um gato é um ser de encantamento. É preciso ter perdido muito da conexão com a natureza, com a vida, com o Mistério para não reparar em um gato, quando ele está por perto. Um gato não passa despercebido por quem está vivo. Talvez seja um bom teste: se vemos ou não um gato.

Escrever sobre um ser de encantamento e mistério, que figura na admiração e imaginação de nossa espécie desde os primórdios – lembramo-nos da deusa egípcia zoomórfica Bastet, corpo de mulher, cabeça felina – é tarefa que requer uma penetração silenciosa no outro mundo: o sutil. Quem sabe o mundo sutil não seja um outro mundo? Talvez seja este mesmo, mas isso só um gato poderia nos responder.

O gato, tradicionalmente, habita a companhia de escritores e bruxas – além de ser um dos animais preferidos das crianças – ou seja, gato é feito sob medida para os que intuem. Poetas podem ter tamanha predileção por gatos, que chegam a compará-los com poemas, pela imprevisibilidade de ambos. André Ricardo Aguiar, em sua plaquete Da existência enquanto gato (Fresta Editorial) brinda os leitores – e os amantes dos gatos – com vinte poemas em que o gato é (e como poderia deixar de ser?) figura soberana.

Alguns desses poemas já nasceram clássicos, como é o caso de Loa para um gato:

Loa para um gato

O gato, ele é todo uma antena
um clérigo de patas, uma ponte
qualquer para atingir o nunca
de esquivez – todo ele mil gatos.

Todo ele parte de si e nenhuma,
fácil de perder-se na sombra,
mover-se felinamente para o mistério
do quarto – que mal respiramos.

Não consigo sequer tocá-lo,
inútil é a ilha do seu nome.
Sua filosofia jamais suportaria
Os gestos bruscos, as fomes.

Não o temos. Um gato tem-nos.
E sua leitura é sermos lidos
por ele, sermos menos que uma
ideia felina, um chamado.

O acento interrogativo do rabo
diz que o bicho é uma pergunta
que não quer resposta. Seus olhos
de desdém são segundas garras.

Deixá-lo ser. Respira-se melhor o ar
volátil enquanto a lenda estremece.
Nem roca nem fuso no íntimo do lar.
Tece-se aqui um gato.

Em Da existência enquanto gato, André Ricardo Aguiar desenvolve uma poesia de fino humor, situações inusitadas como encontrar um gato após a morte e saber que o céu dos gatos é o inferno dos homens. Também há flagrantes deliciosos de pensamento: o gato nos desloca e desnuda, ensina que nosso modo de vida é inútil porque não aprende o vagar nem a verdadeira presença.

Os místicos sabem que os cães protegem o mundo físico e os gatos, o mundo espiritual. Afirmam que à noite, enquanto dormimos, o gato, animal noturno, filtra nossas energias negativas e, durante o dia, enquanto estamos em vigília, o gato dorme, livrando-se do que nos limpou. No poema Carta do gato ao possível dono, ele (eu-lírico-felino) nos avisa: “três quartos de um gato/ tem um deus vigilante”.

Há que se registrar que poemas não se salvam apenas pelos temas, poemas são, antes, a capacidade de trazer o tema à linguagem. André Ricardo Aguiar domina a feitura desse artefato. Sua poesia é exata, lúdica, instigante e imagética. Sua observação do mundo (no caso, do gato) consegue trazer versos como estes, em Sustentável: “o sossego contido na pupila/ como um sol que derrete”. No poema Cadeado, um caso curioso é não sabermos se o eu-lírico é um gato, ou se é o poeta em pleno zoomorfismo.

Lendo Da existência enquanto gato podemos formular perguntas como: ver um gato é vê-lo ou imaginá-lo? Parece muito mais que um gato nos vê: “Não menos fiel que o cão, o gato/ é o verdadeiro amigo imaginário.”

A boa dose de culpa no poema Il castrato, mostra que o “dono” não aprendeu muito com “seu” gato. Afinal, castra-o e apresenta justificativas e minimizações, muito mais para aliviar a consciência de si mesmo que para o gato. Atribui à castração o efeito de tornar o gato um monge, quando um gato o é de qualquer forma (e jamais carrega culpas).

Da existência enquanto gato pertence àquela poesia que aprisiona nossa atenção, que concentra nosso silêncio para que possamos olhar na tentativa de ver. Dos assombros que um gato acrescenta à nossa experiência está seu pulo, salto. Repare: um gato está e não está. Vinte poemas convidam para essa beleza e sensibilidade.


Como flagrar um gato caseiro
[A Marco de Menezes]

Deve-se começar por um movimento furtivo da tarde
e ir pondo aqui e ali móveis caseiros e um ar poroso
de seres que fazem uma impossível sesta em dia de trabalho.

Ou se o fundo melancólico do barulho do elevador
indicar que o dia existe por conta própria, também a sombra
dos livros irrequietos para uma próxima mudança

Pode-se dispensar a existência de Deus, mas não suas tramas
Azuis e alguma hipótese gotejante ali na cozinha. Um frêmito
(caça a um rato imaginário) ali nas dobras da louça lavada.

João Gilberto baixinho no rádio, uma maçaneta da porta
com defeito, e pouco a pouco, lentamente, almofadas e gato
se distinguem, o último pula ao chão com a mesma gravidade

de um astronauta já ciente de que a lua é toda sua:
a casa deserta.


***
Da existência enquanto gato
André Ricardo Aguiar
Poesia
Fresta editorial
2019

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