Prossigo a leitura irresistível.
Diálogo entre Iliá Ilitch Oblómov e Stolz, o amigo alemão:
“ – A
sociedade, o mundo! Você, Andrei, sem dúvida me levou de propósito para essa
sociedade, esse mundo, para que eu perdesse toda vontade de estar lá. A vida: a
boa vida! O que vou encontrar lá? Interesses intelectuais, afetivos? Veja você
mesmo, qual é o centro em torno do qual gira tudo isso? Não existe centro
nenhum, não existe nada de profundo, nada que toque no âmago da vida. São todos
pessoas mortas, adormecidas, piores do que eu, esses membros da sociedade e do
mundo! O que fazem eles da vida? Não ficam deitados, mas correm para lá e para
cá todos os dias, como moscas, e qual o sentido disso? A gente entra num salão
e se admira de ver como os convidados são distribuídos com simetria, como se
acomodam de modo gentil e sóbrio... diante das cartas de um baralho. Nem se
discute, é uma da missões sagradas da vida! Ótimo exemplo para uma mente em
busca de movimento! Por acaso não são uns cadáveres? Por acaso não passam a
vida toda dormindo sentados? Por que sou pior do que eles, se fico deitado em
minha casa e não corrompo a cabeça com trincas e valetes?
–Tudo isso é antigo, já falaram mil vezes
desse assunto – comentou Stolz. – Será
que você não tem nada de novo para dizer?
– E
nossa melhor juventude, o que ela faz, afinal? Por acaso não está dormindo
enquanto caminha ou anda de carruagem pela avenida Niévski, ou enquanto dança?
Como é rotineiro e vazio esse modo de preencher os dias! E veja com que orgulho
e misteriosa dignidade, com que olhar repugnante contemplam quem não se veste
como eles, quem não tem o mesmo título e a mesma posição social que eles. E os
infelizes ainda imaginam que estão acima da multidão comum: “Nós ocupamos, no
serviço público, postos melhores do que os de todos os outros; sentamos na
primeira fileira de poltronas no baile do príncipe N., num lugar onde só nós
temos permissão para entrar”... E quando se reúnem sozinhos, bebem demais,
brigam como feras! Será que isso é coisa de gente que vive, que não está
dormindo? Mas não é só a juventude: veja os mais velhos. Reúnem-se, servem
jantares uns para os outros, sem cordialidade... sem bondade, sem afeição
recíproca! Reúnem-se para um jantar, para uma festa, como se fosse no local de
trabalho, sem alegria, friamente, para se vangloriar do cozinheiro, do salão, e
depois de trocarem gracejos de braços dados tentam passar a perna uns nos
outros. Anteontem, durante o jantar, eu
nem sabia para onde olhar, minha vontade era me enfiar embaixo da mesa quando
começaram a trucidar a reputação das pessoas ausentes: “Fulano é um imbecil,
sicrano é um patife, aquele é um ladrão, o outro é ridículo”... uma verdadeira
chacina! E enquanto falavam assim, miravam nos olhos uns dos outros como se
dissessem: “É só sair por aquela porta que você será o próximo...”. Por que
eles se encontram, se são assim? Por que apertam as mãos uns dos outros com
tanta força? Não se vê nenhum riso sincero, nenhum lampejo de simpatia!
Esforçam-se para atrair alguém de alto escalão para sua casa. E depois se
vangloriam: “Na minha casa esteve fulano, e eu estive na casa de sicrano...”.
Que vida é essa, afinal? Não quero essa vida. O que tenho a aprender com isso,
o que vou extrair daí?
– Sabe
de uma coisa, Iliá? – disse Stolz. – Você pensa como os antigos: tudo isso está
escrito nos livros velhos. Mas, afinal, isso também é bom: pelo menos está refletindo,
não está dormindo. Bem, e o que mais? Prossiga.”
(Publicado pela primeira vez, na
Rússia, em 1859)
Trecho de Oblómov, Ivan Gontcharóv.
Tradução direta do russo por Rubens Figueiredo. Cosac e Naify.
Que trecho excepcional! Jaz jus mesmo ao que dizes do romance. Uma dessas passagens que a gente lê e dificilmente esquece. Além disso, impressiona o fino, contundente humor contido nela. Um recorte feliz.
ResponderExcluirAbraço.
Mais um exemplar da literatura russa que entra, hoje, nos meus objetivos próximos de leitura. Uma paixão, um vício.
ResponderExcluirO conteúdo do livro, do século XIX, é atual e, como se vê (lê), as relações humanas relativas ao convívio social, tristemente, não mudaram.
Eis a raiz da sociofobia.
Sim, querida Joana. Está difícil não ser sociofóbico, mesmo amando as pessoas. O nível de agressividade, de banalização e vulgaridade, no Brasil, está alto demais. A gente acaba, por defesa, evitando o convívio, principalmente com a multidão (que já vai equivalendo a mais de três pessoas no mesmo lugar). O livro, Oblómov, é, ele todo, uma grande reflexão. E o protagonista é um personagem apaixonante, grandioso só como um Dom Quixote, um Hamlet. Você verá. É livro inesquecível, imperdível, daqueles que fazem você se sentir uma pessoa de sorte, por ele ter chegado em suas mãos, ter se feito viagem em seus olhos.
ResponderExcluirGrande comentário, Joana, extraindo da omissão obloviana um sentido muito bem adequado à lamentável contemporaneidade a gerar esse trauma em todos nós (embora sejamos poucos, lamentalmente), os sensíveis. E excelente que de tal comentário a autora do post o contextualize na realidade brasileira, talvez a maior tragédia nacional.
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