Por
Adriane Garcia
O
título é uma despedida. Já nas epígrafes, um casamento e um
divórcio. “Escrevo para me casar” e “por que você não para
de escrever/ E passa a dizer tchau?” de Adília Lopes.
A
capa, um pano branco de bolinhas vermelhas, sinaliza um vestido, uma
saia, sinaliza a delicadeza e sugere alguma dor. Viro o livro, a
contracapa é uma grande mancha de sangue sobre o pano do vestido.
Respiro. Entro. Abro o livro.
A
prosa vem entrecortada de poesia, de forma sutil, segue junto a uma
frieza. Fica por conta do leitor certa compaixão pelos personagens.
É um livro sobre mulheres, sobre a ótica das mulheres nas relações
e de dentro delas. Ana Elisa Ribeiro tem o cinismo dos bons
escritores, que dizem isso para dizer aquilo e dizem aquilo para
dizer aquilo mesmo.
À
fantasia de que mulheres portam-se ou portavam-se apenas passivamente
num território patriarcal, Ana responde com donas de casa que
colocam na balança homens, filhos e a si mesmas. Mulheres cujas
escolhas só podem ser entendidas no terreno da falta delas, mas por
isso mesmo, num universo reinventado onde cabe tanto o holocausto
para proteger os filhos, quanto o assassinato do opressor. Sua
denúncia ultrapassa os lares e vai às ruas, de dentro de um conto,
do nada, de repente, Ana está denunciando a violência policial.
Neste conto em que fala das prostitutas da rua Guaicurus, famosa zona
de prostituição de Belo Horizonte, a autora faz isso como quem nada
quer, inverte. E ao inverter, mostra-nos que a realidade é que se
encontra com os valores trocados:
“(…)
Elas estão ali rezando, com as mãos em concha, pedindo que reabram
os quartinhos em que atendem os clientes. E elas dizem que não, que
não têm nada a ver com o tráfico de drogas. Quem trafica são os
policiais militares. E ainda lhes arrancam parte do soldo recebido
com sal na testa e cheiro de látex. E ainda xingam-nas. E ainda
solicitam serviços de graça. Beijinho, beicinho, chupadinha
grátis.”
Seus
narradores variam, algumas vezes é o homem quem fala, e quando fala,
é de sua boca que sai a confissão da violência ou da redenção
que uma mulher lhe causara. Não raro, é de sua boca – como na
mais dura e repetida realidade – que sai a acusação de culpa
atribuída à vítima. Com recursos da melhor ironia literária, Ana
Elisa Ribeiro cava os feminicídios, escancara-os, faz com que este
bizarro apareça na obra de arte.
“Ontem,
saí do primeiro; saí do segundo; o terceiro soco pegou.”
O
conto acima se chama “explicação na delegacia de ccm” e,
prosseguindo, vamos notando, que onde existe opressão violenta, a
violência pode mudar de lado.
A
mulher idealizada de outrora é agora Maria da Purificação, a puta.
A mulher insatisfeita no casamento fomenta sonhos de adultério – e
realiza. A viúva dá uma festa, porque não suportava mais o marido.
Outra se submete terrivelmente, e perde a vida para proteger a vida,
única coisa que lhe resta, sabe-se lá para qual finalidade. A
narrativa é perversa e com requintes de crueldade, mas há sutileza,
muita e um humor ácido:
“Desde
que nos conhecemos me policio para não chamá-la pelo nome da
falecida, mas não sei de onde vêm essas desgraças. A boca diz o
que nem é sincero.”
Seu
humor ácido, quer corroer o que é dado como natural:
“Às
vésperas do casamento, mandou-me um bilhete, representante máximo
de sua franqueza presente e futura: não lavo, não passo, não sei
cozer nem desejo aprender, não limpo, não seco, não espano. Baixei
os olhos, verti uns pequenos arrependimentos antecipados e me casei.”
Neste
universo, majoritariamente de histórias de quem não é feliz para
sempre, sobra muito espaço para filhos infelizes, que continuarão a
roda sem fim da infelicidade conjugal, do aprendizado do poder
violento, do machismo, da humilhação pela subserviência e anulação
de seres humanos.
Todo
um universo frequentado por mulheres aparece nesta literatura, não
podendo faltar a maternidade, que, obviamente, tratando-se de Ana
Elisa Ribeiro, não seria decorada com o manto da Virgem Maria. A
maternidade que ela nos dá, e que algumas mulheres escritoras
começam – felizmente – a nos dar, é a maternidade real, cheia
de cuidados difíceis, de resignações e sacrifícios, na maioria
das vezes sem qualquer colaboração masculina; é a maternidade
repleta de dúvidas e culpa por não se encaixar no que homens
discursaram sobre a maternidade que sequer conhecem.
Creio
que não seja necessário argumentar sobre a importância de livros
como este no mundo que vivemos, especificamente nesta atualidade e no
país em que ele foi publicado. Sabemos que nossa formação
literária vem com mais lacunas do que simplesmente a dos livros que
não lemos por falta de tempo. Há algo novo e complementar que esta
literatura abordando o universo e o ponto de vista feminino traz.
Este algo pode ser claramente reconhecido neste Beijo, boa sorte.
A
literatura sempre foi o campo de se falar o que o mundo é e a melhor
literatura sempre registrou o seu tempo.
No
final do livro, Ana nos relata que escreveu estes contos curtos no
blog A estante, entre 2001 e 2003. É. Ela mora na contemporaneidade
desde sempre.
Beijo,
Boa sorte
Ana
Elisa Ribeiro
Editora
Jovens Escribas
2015
72
páginas
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