quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Memória da Bananeira, romance excelente de Isadora Krieger






Por Adriane Garcia



    Andei-me às voltas com um romance delicioso, admirável e exigente. O romance de Isadora Krieger, Memória da Bananeira (ed. Carniceria Livros, 2014). Exigente porque não estamos habituados às quebras de formas, a nos confrontarmos com os textos que fogem do usual. Delicioso porque vale cada linha, sentimo-nos num jogo, é um livro que não duvida da inteligência e da curiosidade do leitor. Nele, a autora não briga com as palavras, torna-as aliadas, valendo-se desde onomatopeias e interjeições  a vocábulos de internautas e receita de bolo. Justamente suas experimentações de forma nos levam para um terreno do estranhamento de leitura e requer um familiarizar-se no percurso. Um romance sobretudo criativo, cheio de surpresas, onde as descobertas se fazem aos poucos, até que descubramos que somos, em algum momento da vida, todos aqueles personagens de nomes compostos, grafados com letras maiúsculas, entidades ontológicas, tipos humanos de nosso caleidoscópio interior, tão repleto.

    Na obra, sempre sobre os olhares espirituais de Belzebu-Te-Ama e Belezura Também (princípio yin-yang nos regendo), Gioconda Lívida de Existência troca cartas com Genésio do Peito Genuíno, um "casal" discutindo uma relação que não é só a do casal, mas também a relação de ambos com a vida, seus sonhos, suas desistências, resignações, escolhas, medos, o fardo da memória. O tom é marcado pelo humor (gargalhei muitas vezes), pela ironia e por uma grande compaixão diante da condição humana. Compaixão que Isadora Krieger em nenhum momento transforma em piedade tola, trazendo mesmo passagens duras sobre um entendimento de humanidade. A Bananeira, esta reprodutora de novos bananas, a incansável fábrica de erros.

    "Genésio,

    Não sejas tolo. Num banana não há nada além de podridão. Um banana apodrece tudo, absolutamente tudo. Comê-lo para quê? Para ganhar furúnculos na bunda? Para receber pestes no sítio? Meu querido, dá um passeio na Cidade das Crianças Marmanjas, um passeiozinho basta, verás somente a multiplicação do estrago dos primeiros bananas. E não importa a pequena forma e a grande causa do nosso apodrecimento, nós fracassamos há muito tempo, emporcalhamos tudo, até o invisível. Portanto, meu querido, seria uma idiotice descomunal tentar encontrar A Criança que Avoa, viva."


    Isadora tece um livro que, contando uma história epistolar, critica os valores de nossa sociedade; mais, critica os valores de nossa civilização, expõe-nos fragilidades individuais e coletivas. Fim das contas, o desejo maior é a realização do amor, território de uma memória de medo, cravejada por tanto fracasso. Em determinado momento da leitura, foi-me impossível não pensar sobre o amor em Freud, para quem a pulsão instintiva levava o indivíduo a esse sentimento, que seria uma forma de realização natural humana, fruto da procura da compatibilidade no outro para poder se exercer. Amar um reflexo, amar um que me faça encontrar  a mim, amar-me. Toda a dificuldade de equacionar diferenças e os enganos dos encontros. Mas também, ah, bênção e maldição!, o amor como uma ordem interior.

    "amor, grande coisa o amor, duas orelhas na sopa, amor, uma escolinha em chamas, amor, uma catedral de lama, amor, benevolente, salvador, alto e justíssimo amor, uma vez discursei a favor de um linchamento e babei a palavra amor, ah, amor, e do dia que brincaste com um cão, tu te lembras? (...)"

    Genésio procura A Criança que Avoa, e sabe que estar morto (ser visitado pela Madama) é não encontrá-la nunca mais.
  A Daminha de Unha Francesinha, dia após dia, constrói sua memória de fiascos, numa vida amorosa de superficialidade desesperada.
   A Vizinha que Não Existe irrompe para existir, com sua vida sexual ativa, que Gioconda ouve, discretamente, quase como se não lhe interessasse.
  O Vizinho que Igualmente É triste, com sua britadeira, pode apenas estar esperando por alguém que o faça menos triste ou, talvez o mais triste seja o outro que o vê.
   A rádio Vai Saber O Que Acontece na Cabeça do Outro dá as notícias do mundo exterior, que continua na mesma, construindo pontos para a fuga.
   Gioconda Lívida de Existência refugiou-se num sítio, com suas galinhas, cães, bichos. Enfrenta cotidianamente a decisão de afastar-se das relações humanas muito próximas, afinal a memória da bananeira (matriz) é dolorida.


  Mas vamos lá, Memória da Bananeira não é um livro sobre desistência. É um livro sobre coragem.

***
- Isadora Krieger é poeta e escritora. Nasceu em Balneário Camboriú, Santa Catarina, mas mudou-se para São Paulo em 1994 e desde então permaneceu na capital paulista. É idealizadora e produtora do Cabaret Revoltaire, projeto em atividade e aberto a experimentações artísticas diversas, passando pela pintura com modelo vivo, leituras de poesias, performances e música. Em 2014, publicou os livros O Gosto da Cabeça na coleção "Poesia Menor", pela publicações Iara e Caráter Anal na antologia "Boca Santa", publicada pelo selo Carniceria Livros. Memória da Bananeira é o seu primeiro romance.



    







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