Um defeito de cor (Record, 2006), de Ana Maria Gonçalves, deveria ser leitura incluída no
currículo escolar de todos os brasileiros. Não tendo sido, Um defeito de cor deveria fazer parte do compromisso de formação
continuada de cada brasileiro. Trata-se de literatura e, sobretudo, trata-se daquela
literatura que consegue trazer para tão perto um lugar, um personagem, uma história,
que passamos a andar nesse lugar, com esse personagem e sofremos e nos alegramos
como se essa história fosse a nossa (e em tantos momentos ela pode mesmo, de
alguma forma, ser a história de quem está lendo).
A narrativa é feita em primeira
pessoa e conta a saga de Kehinde (Luiza Mahin, mãe do poeta abolicionista Luiz
Gama), africana trazida para o Brasil, no início do século XIX, em um
“tumbeiro”, rumo à Bahia. Escravizada aos oito anos, segue para uma fazenda de
engenho de cana, onde também se praticava a pesca da baleia e o preparo de seus
derivados. O leitor, que já acompanhava a infância de Kehinde em Savalu, e
depois em Uidá (Reino de Daomé), passa a conhecer também sua adolescência,
juventude e vida adulta. A narrativa prossegue até sua velhice. Com isso,
ergue-se um grande e completo retrato da vida de uma escravizada neste país,
parte dos mais de cinco milhões de pessoas africanas, sequestradas em sua terra
de origem e trazidas para o Brasil durante quatro séculos, onde estiveram
sujeitas a todo tipo de violência, atos tipificados como crime, se cometidos
contra uma pessoa branca.
Dos ritos dedicados aos voduns e
orixás à capacidade de transformação no sincretismo religioso, do detalhamento
de modos tribais africanos às diferenças culturais assimiladas dos árabes nos
muçurumins, do trabalho, opressão e exploração do escravizado brasileiro aos
seus modos de se libertar, Ana Maria Gonçalves cria uma obra monumental (não só
pelas suas 952 páginas), espécie de epopeia, onde não se preocupa em dar à sua
protagonista falas e pensamentos politicamente corretos. Kehinde é personagem
de carne e osso, lutando pela sobrevivência, pela liberdade, pelo amor, pelo
enriquecimento, pela identidade e faz isso de modo particular e único, talvez
socorrida, em alguns momentos, pela sorte que acompanha os ibêjis (gêmeos, em
iorubá), mas certamente guiada por seus fortes atributos: força, inteligência,
sagacidade, generosidade e uma vontade enorme de aprender.
O livro de Ana Maria Gonçalves ainda
traz riquezas como detalhes sobre os nomes em iorubá, que utiliza por quase
toda a narrativa, sobre religião e política em terras africanas, além de um
panorama histórico sobre a Bahia e o Rio de Janeiro. Um
defeito de cor é uma obra que faz refletir sobre as relações injustas e desiguais
entre pessoas negras e pessoas brancas, de modo complexo, considerando o
processo social, histórico e também afetivo. Tudo isso como pano de fundo para
uma história emocionante, de uma mulher que busca a própria liberdade e o
próprio destino, em uma vida cheia de encontros e desencontros. Acompanhar
Kehinde saindo da África é viagem sem trégua. Acompanhá-la voltando à África põe-nos
novamente no oceano. Já anciã, Kehinde precisará retornar ao Brasil para lidar
com sua perda mais dolorosa. Nós, leitores desta obra ímpar, a esta altura, já
iríamos com ela para qualquer lugar.
Na orelha do livro, Millôr Fernandes
nos desafia: “Em suas 952 páginas, Um
defeito de cor não tem hausto, parada pra respirar. Desmintam-me, por
favor.”
Impossível desmentir Millôr, Ana Maria
Gonçalves construiu uma das melhores obras da literatura brasileira.
“Kehinde
Eu nasci em Savalu, reino de Daomé, África, no ano de um mil oitocentos e
dez. Portanto, tinha seis anos, quase sete, quando esta história começou. O que
aconteceu antes disso não tem importância, pois a vida corria paralela ao destino. O meu nome é Kehinde porque sou ibêji ¹ e nasci
por último. Minha irmã nasceu primeiro e por isso se chamava Taiwo. Antes
tinha nascido o meu irmão Kokumo, e o nome dele significava “não morrerás mais,
os deuses te segurarão”. O Kokumo era um abiku², como a minha mãe. O nome dela,
Dúrójaiyé, era o mesmo que “fica, tu serás mimada”. A minha avó Dúrójaiyé tinha
esse nome porque também era uma abiku, e o nome dela pedia “fica para gozar a
vida, nós imploramos”. Assim são os abikus, espíritos amigos há mais tempo do
que qualquer um de nós pode contar, e que, antes de nascer, combinam entre si
que logo voltarão a morrer para se encontrarem novamente no mundo dos
espíritos. Alguns abikus tentam nascer na mesma família para permanecerem
juntos, embora não se lembrem disto quando estão aqui no ayê, na terra, a não
ser quando sabem que são abikus. Eles têm nomes especiais que tentam segurá-los
vivos por mais tempo, o que às vezes funciona. Mas ninguém foge ao destino, a
não ser que Ele queira, porque quando Ele quer, até água fria é remédio.
A minha avó nasceu em Abomé, a capital do reino de Daomé, ou Dan-home,
onde o rei governava da casa assentada sobre as entranhas de Dan. Ela dizia que
esta é uma história muito antiga, do tempo em que os homens ainda respeitavam
as árvores, quando o rei Abaka foi pedir ao vizinho Dan um pedaço de terra para
aumentar o seu reino. Daquela vez, Dan já deu a terra de má vontade, e quando
Abaka pediu outro pedaço para construir um castelo, Dan ficou bravo e respondeu
que Abaka podia construir o castelo sobre a sua barriga, pois não daria mais
terra alguma. Com raiva da resposta mal-educada, o rei Abaka matou Dan e, sobre
as entranhas espalhadas no chão, ergueu um palácio suntuoso, a partir do qual
teve início o grande império do povo ioruba. Dan também é o nome da serpente
sagrada, mas esta história fica para mais tarde ou para outra pessoa contar
quando chegar a hora dela, porque agora preciso falar de um tempo que começou muito depois, quando a
perseguição do rei monstro Adandozan obrigou minha avó a sair de Abomé e se
mudar para Savalu.” (p. 19-20)
¹ Ibêji:
assim são chamados os gêmeos entre os povos iorubas.
² Abiku: “criança
nascida para morrer”.
***
Um defeito de
cor
Ana Maria
Gonçalves
Romance
Ed. Record
2006
Ótima resenha, Adriane. Obrigado por ela, já que eu não conhecia o livro.
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