Interrompidos
(ed. Reformatório), de Alê Motta, é um livro de contos curtos, compostos de 4 a
7 parágrafos. Elaborando uma maneira de contar, quase uniforme, por todo o
livro, Alê Motta condensa até o penúltimo parágrafo histórias que conduzem a
emoção do leitor. É com maestria que a autora o leva a pensar exatamente o que
ela quer que ele pense, porém é no último parágrafo de cada conto que ela o
trai, que ela o engana, que ela lhe aplica uma espécie de inversão e susto. Ao
não subestimar o leitor, Alê Motta não fala tudo, deixa espaço para o leitor
continuar as histórias, ou compor o que não foi dito, mas sugerido. Na forma, Interrompidos também cumpre seu projeto
temático: os contos interrompem expectativas.
Como
assunto central, o livro destaca a morte, interrupção por excelência, seja por
acidente, doença, velhice, suicídio ou, principalmente, assassinato. É ainda
interessante notar que a maioria dos assassinatos, em Interrompidos, é cometido por mulheres, contra homens. O homem de Interrompidos é quase sempre aquele que
trai, abandona ou maltrata.
Nesta
obra de Alê Motta não existe Deus, tampouco a culpa cristã, nenhuma moralidade
que não seja a do alívio de se livrar da opressão. O desaparecimento do outro é
solução recorrente e revisitada, histórias que poderiam ser de amor tornam-se
histórias de vingança; mágoas infantis são guardadas como combustível para
futuros desaparecimentos. A morte também se apresentará como solução para os
conflitos entre irmãos, pais e filhos, pais e filhas, colegas de trabalho. Já a
morte da mãe, não. A morte da mãe é sempre como a despedida de nossa única nave
e o sentimento de se estar sem saída no mundo.
Em
O erotismo, de Georges Bataille,
Tanatos está sempre abraçado com Eros. Mal disfarçamos isso, mas sempre
disfarçamos: “Um conjunto de condições
nos conduz a fazer do homem (da humanidade) uma imagem igualmente afastada do
prazer extremo e da extrema dor: os interditos mais comuns atingem a vida
sexual e a morte, de modo que uma e outra formaram um domínio sagrado,
pertencente à religião.” Disso também advém o aspecto grave que damos à
morte. Ler Interrompidos é ter esse
contato com uma narrativa sobre a interrupção definitiva chamada morte sem a
presença do julgamento. Alê Motta disfarça a gravidade, inclusive do crime,
escrevendo também com algum humor. Desvia nosso olhar do julgamento e nos
mantém no fato (e no desejo). Quem é que nunca pensou na utilidade de (matar) morrer
alguém? Os personagens de Alê Motta matam e são mortos. Por trás do “horror que
intensifica a atração” há a vida. E a vida é tão difícil, quando nos é negado o
amor.
***
Prato principal
Frango
assado com batatas portuguesas. Arroz branco, bem soltinho. Salada de rúcula e
palmito. Molho de mostarda.
Fiz
seu prato. Enquanto comia, falou do seu carro na revisão, do CD novo da sua
banda predileta, reclamou do seu patrão e emendou na chuva que, se viesse,
atrapalharia seu futebol.
Sentada
na cadeira, ao seu lado, acompanhei a revisão, a banda, a possível chuva, a
reclamação. Sou ótima para acompanhar. Sou como o molho de mostarda.
Ele
terminou de comer. Eu sorri. O veneno demora uns minutos para fazer efeito.
Meu avô
Meu
avô morava num sítio. Uma casa amarela com varanda. Portas e janelas brancas.
Ele
amava andar a cavalo. Num dia calorento de janeiro ele cavalgou muitos
quilômetros. Quando o sol se pôs voltou para casa. Caiu na soleira da varanda.
Depois
do enterro ninguém encontrou o cavalo. Reza a lenda que ele é o único cavalo do
mundo que cavalga todos os dias até o pôr do sol. E chora quando vê uma casa
com varanda.
***
Interrompidos
Alê Motta
Contos
2017
Reformatório
Nenhum comentário:
Postar um comentário