Por
Adriane Garcia
Inteligente
e emocionante, “O som do rugido da onça”, romance de Micheliny
Verunschk, compõe (recompõe) uma história para Iñe-e e Juri,
duas crianças indígenas sequestradas/traficadas pelos cientistas Spix e Martius,
na missão científico-cultural realizada pelos naturalistas bávaros entre os
anos de 1818 e 1821. Em uma terrível viagem de navio, que lembra também o
horror dos tumbeiros, algumas crianças, entre elas a menina-onça do povo
Miranha e o menino-peixe do povo Juri, são levadas até Munique para estudos e
exibição na corte de Maximilian Joseph I.
Logo no
início, duas coisas são percebidas: o terror da menina Iñê-e, presa em
um porão de navio com animais empalhados e sem ter com quem partilhar qualquer
palavra – mesmo as outras crianças são de comunidades diferentes e não falam a
mesma língua – e o uso da linguagem que a autora escolhe para poder devolver algo
da história das duas crianças. Micheliny Verunschk nos conduz pelo horror,
pela travessia infernal que contém angústia, precariedade, pavor e morte,
conseguindo que suportemos essa viagem porque acolhe na narrativa o mundo
mágico e lírico da integração à natureza, a poesia do mistério, do afeto, do
encantamento e dos encantados. É com essa linguagem prenhe de simbolismo e
imagens que, por exemplo, percebemos o estranhamento da menina Iñe-e ao
ver o mar pela primeira vez: “Tanta água não, nunca haviam conhecido, um
espírito assustador em sua baba salgada, esturrando, mas onça é que não”. É
por causa da exatidão dessa habilidade da linguagem – que concilia delicadeza e
contundência – que damos conta da fome, da pouca ração para os animais e
crianças que, morrendo uma a uma, mostram Iñe-e morrendo junto, de uma
outra forma, “porque lhe faltava a palavra”.
É da
falta da palavra que O som do rugido da onça vem falar. É sobre retirar
o som, a tradição, o idioma, representado na violência máxima do silenciamento
simbólico que é substituir, apagar o nome daquele que se coloniza. Mostrando a
violência simbólica acompanhada da violência física, o poder de vida e de morte
sobre o outro, a romancista não deixa escapar qualquer detalhe dessa opressão,
e lembra que os reis, mesmo decapitados, mantém seus nomes, mas ao menino Juri,
filho e sucessor natural do líder de sua tribo, o nome foi negado.
A negação
da linguagem vai direto no apagamento da identidade e na reafirmação das
relações de poder, mas a história negada de Iñe-e e Juri precisa
ser contada na língua possível. Assim, a narradora – e aqui escolhemos que ela
é a e não o, assim como os rios poderiam ser as rios, se a
história da nomeação das coisas fosse outra – não esconde seu conflito com a
própria linguagem que precisa emprestar: “Empresta-se para Iñe-e essa voz e
essa língua, e mesmo essas letras, todas muito bem-arrumadas, dispostas umas
atrás das outras, como um colar de formigas pelo chão, porque agora esse é o
único meio disponível. O mais eficiente. E embora ela, essa língua, seja
áspera, perfurante, há alguma liberdade sobre como pode ser utilizada, porque
houve muito custo em apreendê-la.” Ouvindo a sabedoria da floresta, a
autora nos conta que todos os seres têm palavras: “Tem palavras que só as
onças usam e que não é dado a nenhum outro animal dizê-las. Do mesmo modo toda
a diversidade de reinos dos bichos e das plantas.” Enquanto se acompanha a
trágica história do sequestro e da inadaptação das crianças a um mundo que as
violenta e para o qual elas não têm sequer aparelhamento imunológico, também se
reflete sobre a palavra e seus limites, em uma confissão que compreende tanto
boa vontade quanto um sentimento de impotência, pois a narração tentará preencher
as lacunas dando-nos, e dando àquelas crianças, palavras, mas será “tudo
eivado de imperfeição”.
Pode-se ler
“O som do rugido da onça” como um romance que conta histórias paralelas,
a história de Josefa, por exemplo, a estudante paraense radicada em São Paulo, em
fuga da própria identidade, indo encontrá-la no rosto de Iñe-e, dois séculos
depois, pois estamos na proximidade do dia 18 de março de 2018, dia do assassinato
de Marielle Franco. Mas essa é uma leitura possível se estivermos na percepção
do tempo linear, tempo da cultura judaico-cristã e não do tempo de inúmeras das
chamadas sociedades tradicionais, cuja constituição é circular. A forma que a autora
escolhe para narrar pode nos fazer perceber uma história única, em consonância
com o movimento de fluxo contínuo entre as personagens, em que a narração vai e
volta, dando a própria ideia da circularidade do tempo. No círculo qualquer
lugar pode ser o começo e o passado, o presente e o futuro estão juntos. Os
antepassados ensinam os viventes. Iñe-e também é Josefa. Tudo compondo uma
história só; o fato que não é curado tornando-se uma repetição. “Uaara-Iñe-e
viu que sua vida e sua morte se davam por repetidas nas vidas e nas mortes de
outras crianças, como a Dona da Caça havia dito.” Assim, não é estranho que do século XIX se
passe ao documentário sobre o cacique Raoni ou às manchetes de jornais
que registram diversos crimes contra os povos originários. É tema e forma, na
cosmogonia que abriga os bichos desde o princípio dos tempos, as causas e
efeitos, tudo interligado, sob os olhos da “Onça Grande, Tipai uu”.
O som do
rugido da onça mostra a desesperança de Iñe-e em voltar
para sua terra, para os seus familiares, sua mãe, sua avó, seu rio. Fosse
nomeada a doença naquela época, Iñe-e estaria tomada de depressão. Em
uma melancolia profunda, na sua desgraça (que os leitores são instados a saber que
é a desgraça de um país chamado Brasil e cuja história se funda nessa violência),
ela repensa a desgraça dos inimigos que na tribo também eram separados de seus
filhos, de seus pais, de sua gente e vendidos aos brancos. Na sua desgraça de
perder sua própria criança, a rainha Karoline Friederike Wilhelmine von
Baden repensa a desgraça das crianças indígenas sob sua custódia e sente culpa
na sua consciência acusatória. Micheliny Verunschk situa a rainha na sua
condição de mulher, fazendo com que esse seja também um tema que acompanha a
obra.
O som do
rugido da onça denuncia as forjas da história hegemônica, as
palavras que podem ser domadas muito facilmente com o objetivo de trair, de
falsificar uma biografia nobre, ocultando ou maquiando todos os atos vis. É
isso que faz Martius e é contra isso que, declaradamente, Verunschk
escreve. Se Martius se insere no seu próprio discurso e no discurso
histórico como o salvador daquelas crianças, o herói que as libertou de um
cativeiro, aquele que as tirou do breu da barbárie para a luz da civilização, a
autora o coloca no lugar que ele se esforça por esconder: o de um sequestrador
de crianças. Talvez uma das mais duras
constatações desse romance embebido de poesia seja a de que com toda a reparação
do mundo algo jamais poderá ser devolvido. Ainda que Spix simbolize o
homem “menos pior”, aquele que não deseja o efeito da ação, o homem branco é um
devedor irremediável.
A escritora
Márcia Wayna Kambeba, do povo Omágua/Kambeba, em seu Saberes da
floresta, fala da importância de se formar um lugar de escuta: “É
preciso silenciar para ouvir as vozes da floresta ecoando em nossa alma,
tornando-nos sensíveis para entender cada movimento, cada cor e o canto dos
pássaros e animais. As vozes das florestas servem de alerta para evitar muitos
desastres, para educar, curar, orientar. É preciso estar com o coração e os
ouvidos atentos para acolher e entender.” A escritora e pesquisadora Julie
Dorrico, descendente dos Macuxis, no prefácio que faz em Saberes da
floresta, defende que o povo branco é que deveria se instruir na educação
dos povos ameríndios. A pesquisadora Maria Luísa Lucas, no artigo Os
Miranha e as fotografias de Albert Frisch, faz a seguinte pergunta: “Ao
conhecermos melhor os meandros das relações entre os povos originários e os
não-indígenas no passado, podemos mesmo nos perguntar: e se essa última e
distante fronteira puder ser não o fim, mas o começo do Brasil?”
O som do
rugido da onça é um romance que nos faz pensar sobre esse lugar
de escuta, sobre essa educação que nos falta e sobre um futuro que, de forma
circular, fosse não o fim, mas, como na descoberta de Josefa, um começo.
***
O som do
rugido da onça
Micheliny
Verunshck
Romance
Companhia
das Letras
2021
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