Por
Adriane Garcia
Por estes
dias, estive envolvida na leitura do romance A origem da água, de Ana
Cristina Braga Martes. Considero que “envolvida” é uma palavra acertada, já
que somente as obrigações diárias faziam com que eu me separasse do livro. Nele,
a autora ficcionaliza a história da escritora Maura Lopes Cançado, em
uma livre adaptação que contou com uma pesquisa não só da vida, como também da
obra de Maura.
O ponto
crucial é a loucura e a grande pergunta é de onde ela vem. Laura, a protagonista
narradora, é desde a infância assombrada pela doença que nem ao menos tem nome.
A mãe já recomendava: “Não precisa espalhar, contar isso, quem precisa
saber, já está sabendo” e Laura convivia com o que era presença
incontida e silêncio: “Era a minha doença, doença que não tinha nome”.
Sem saber o que pronunciar a respeito de si, imersa na tensão do tabu da
palavra “louca”, a menina conviverá com seu transtorno (alucinações,
surtos psicóticos, esquizofrenia) conhecendo dele sua força, suportando seu
mistério. Qual a origem da água, como impedi-la de ser água e agir como tal? O
que poderia conter um rio caudaloso, um tsunami?
Assim
como Maura, a personagem Laura irá se internar voluntariamente em
um hospício, o Hospital Gustavo Riedel, no Engenho de Dentro, Zona Norte
do Rio de Janeiro. Essa experiência que a personagem narra, assim como a narrou
em Hospício é Deus a escritora Maura Lopes Cançado, coloca-nos
dentro da instituição psiquiátrica. Nas instituições de internação psiquiátrica,
longe de haver uma preocupação com a saúde mental dos internos, o que se vê é
ainda mais silenciamento sobre a loucura. O louco é alguém que tem que ser
contido, neutralizado, que deve deixar de sentir, a fim de se tornar menos
pernicioso à “normalidade” ao seu redor. Todos os lugares de internação
coletiva deveriam ser muito bem vigiados pelos organismos de Direitos Humanos,
pois nesses lugares, por suas próprias características, há uma facilidade enorme
em se destituir as pessoas de sua humanidade e praticar, inclusive, tortura. O
hospício é cárcere e, muitas vezes, foi e é lugar de maus-tratos, como reforça
um outro livro, Holocausto brasileiro, da jornalista Daniela Arbex,
que não retrata uma instituição psiquiátrica, mas um campo de concentração.
Ao
contrário do que se pode pensar, não são somente as pessoas com diagnósticos
indiscutíveis de transtornos mentais que são internadas nos hospícios; neles,
todas aquelas e todos aqueles que perturbam a ordem pública, a ordem
matrimonial, a ordem social e política, podem ter igual destino ao dos loucos,
tornando-se, compreensivelmente, um deles. No hospício, os remédios
neutralizantes e a violência de contenção tentam barrar a força da água. Nos
detalhes do prédio, do refeitório, da forma de servir a comida, das roupas, do
tratamento estéril de bons afetos, Laura pode depreender que seu lugar
tanto fora quanto dentro daquela instituição é o lugar-nenhum, o sem-lugar.
Porém, ela não está ali morta, inerte, incapaz de olhar e ver. Por isso escreve
e nos noticia: “Cinza é a cor do hospício”.
Com uma
linguagem fluida e, ao mesmo tempo, requintada, Ana Cristina Braga Martes
retrata a loucura para além dos seus clichês, sua personagem nos leva à vida
pulsante de uma mulher que lê, que escreve, que quer romper tabus impostos pelo
machismo, que questiona o mundo e ousa ser sincera, como talvez somente os
“loucos” possam ser, em uma sociedade que, como já nos foi alertado por Freud,
só pode ser hipócrita, em resposta às altas exigências de uma moralidade que
está muito além do que o indivíduo pode dar sem pagar com seu adoecimento.
Ao
escolher como base de seu romance a história de Maura, uma mulher que se
sabia escritora, pilotava aviões, foi para a cidade grande e conviveu com artistas,
escritores, jornalistas e intelectuais, tendo sua vida marcada por internações,
Ana Cristina Braga Martes encontra a personagem perfeita para se
inspirar e nos mostrar que uma pessoa com transtornos mentais não pode ser
reduzida apenas ao seu aspecto biológico. As pessoas com transtornos mentais
são seres humanos que, fora das crises, têm consciência de si, sabem onde
estão, sonham, amam, esperam. Laura, como Maura, encontrou na
escrita uma maneira de não silenciar sobre o seu mistério e a sua condição. A
origem da água, a de Laura, talvez esteja na fixação pelo pai como
modelo e objeto. Já a origem de tal fixação não se encontra. O fascínio pelo
abismo e o amor por este homem – procurado em todos os outros homens com os
quais vai se relacionar afetivamente – ditará os caminhos e uma maneira egóica
de se sentir o centro, de fazer apenas o que quer, de não suportar a
contrariedade. Uma represa que estoura. A água escorre sem que Laura consiga
dirigi-la, até que o mundo se torne todo água.
“Ainda
que impedidas de cultivar o solo ácido, tentamos simular indiferença às pedras,
espinhos, pulgas e agulhas, em busca de uma outra natureza. Qual é mesmo o nome
dessa nossa natureza?, ela pergunta. A minha é escrever, dona Rubia, escrever.
Então a minha também é, ela responde.
Aqui
dentro avisto mulheres loucas que amam sem saber amar. Pior: amam sem poder
tocar. O amor pelo louco é o amor cercado, mudo, inviável. Só resta um caminho
aos loucos que amam: desaprender. Aqui dentro há mulheres que amam, que pintam,
recitam, atuam, fingem e escrevem.
É
preciso aprender a escrever e a viver de modo conciso, com parcimônia nas
interpretações. É o que eu digo a elas quando me mostram seus escritos. Parece
que voltei à redação do jornal: evite pontos de interjeição e elimine as
reticências. Falei isso tudo para o doutor A., mas ele não entendeu nada.
Nessas horas, tenho certeza de que minha inteligência é superior à dele.” (p.
70)
***
A origem da água
Ana Cristina Braga Martes
Romance
Confraria do Vento
2019
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