domingo, 28 de fevereiro de 2016

Impossível como nunca ter tido um rosto – de Ricardo Aleixo



 por Adriane Garcia


    Otávio Paz, em seu O arco e a lira (livro que ganhei, há algum tempo, da poeta Simone de Andrade Neves e que guardo entre meus carinhos), começa dizendo: “a poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo, cria outro. Pão dos escolhidos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; retorno à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Prece ao vazio, diálogo com a ausência: o tédio, a angústia e o desespero a alimentam. Oração, ladainha, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história: em seu seio todos os conflitos objetivos se resolvem e o homem finalmente toma consciência de ser mais que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar de uma forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da ideia. Loucura, êxtase, logos. Retorno à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo.”
    Começo com Otávio Paz para dizer de Impossível como nunca ter tido um rosto, de Ricardo Aleixo.
    Estive, por dias, consumida por esta leitura. Não que fosse um livro que não se lesse rápido, se se quisesse, são setenta e seis páginas de uma bonita edição. Mas havia tanto ali que era preciso ler devagar. Era preciso ler o poema. E reler. Só o poema. Não se tratava de nenhum problema de entendimento, hermetismo algum; era uma questão de sorver uma nuance que ainda poderia ter passado, como quem quer aproveitar a última gota de uma boa bebida que não se tem todos os dias. E após terminar me veio, imediatamente, O arco e a lira, porque pensava: à luz de Impossível como nunca ter tido um rosto, voltarei àquela introdução e verei se este livro preenche, caso a caso, aquilo que Paz discorre como poesia. Obviamente, eu já tinha a resposta. Mas topei o jogo de cartas marcadas e passei confirmando cada frase.
    Em Impossível é impossível não concluir acerca de uma extremada sensibilidade. Os versos de Aleixo são a escuta de um silêncio anterior às coisas. De uma beleza que chega a ser dolorida, porque alcançada no intangível.

O olhar talvez
comece antes

das pálpebras
se abrirem.”

    Sim, antes das pálpebras se abrirem, é possível adentrar o sólido, auscultá-lo, como no poema Paragem:

a velocidade
azul da flor.
o tempo
por dentro

da pedra
no fundo
do rio. o
contrário

de uma
árvore. o
peso da
menor

estrela. o
dia inteiro
antes do
seu nome.

    O livro vai do pessoal ao cósmico (o poeta tanto olha microscopicamente para si, quanto telescopicamente para o infinito), do filosófico ao erótico e, por todo tempo, o prazer de sentir uma poesia refinadíssima e contemporânea, que domina ritmo, sendo também música; que usa as palavras na demonstração de que seu poeta é um brincante e monta e desmonta com elas o que quer.
Impossível como nunca ter tido um rosto é um livro sobre identidade, não à toa, o poeta começa dizendo deste rosto imaginado, o rosto vazio, e termina por preenchê-lo dizendo:

ricardo ~ eu sou ~ filho desde e para sempre ~ de íris e américo ~”

    Neste percurso, entre um rosto vazio e um rosto completo, com contorno e preenchimento, os conflitos entre o que é visível e o que é invisível, entre o claro e o escuro, inserido e não inserido, as difíceis relações humanas, as desigualdades sociais, a consciência da mortalidade, o Enigma, o Nunca, o encantamento pela Beleza contida nas mulheres, o contato maduro com a solidão, a solidão positiva, que não surpreende, sabida atávica, transmitida desde a primeira ancestralidade; o amor que “é feito de lascas/ de silêncio// e de passos inaptos/ para a linha reta.”
    Fosse na empolgação do belo e do genuinamente bem executado, ficaria eu copiando poemas e poemas do livro numa resenha, mas eu não deveria, e vale mesmo é lê-lo do início ao fim e tê-lo, presentemente, onde guardamos poesia de mestres. Não resistindo à tentação, coloco aqui este

O mundo como está

Irrespondível – o mundo
como está, esta tarde. Hálito

de perguntas no ar. Alento algum:
três, e não duas como das outras

vezes. Úmidas, sol dissolvido
entre lábios de sabe-se lá

qual boca. Passo.

    Voltando a Otávio Paz, sobre a poesia, nada vem tanto a calhar: “ostenta todos os rostos, mas há quem afirme que não possui nenhum: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana!”, então, Aleixo nos dá

) O rosto possível, dadas as

circunstâncias (
Impossível como nunca ter tido

um
rosto )




* o autor adotou criticamente o processo de edição própria e os exemplares podem ser adquiridos com ele. 

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