por Adriane Garcia
Otávio Paz, em seu O arco e
a lira (livro que ganhei, há algum tempo, da poeta Simone de Andrade
Neves e que guardo entre meus carinhos), começa dizendo: “a
poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz
de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por
natureza; exercício espiritual, é um método de libertação
interior. A poesia revela este mundo, cria outro. Pão dos
escolhidos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; retorno
à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular.
Prece ao vazio, diálogo com a ausência: o tédio, a angústia e o
desespero a alimentam. Oração, ladainha, epifania, presença.
Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação
do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes.
Nega a história: em seu seio todos os conflitos objetivos se
resolvem e o homem finalmente toma consciência de ser mais que
passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento
não dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar de
uma forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras;
criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia
de uma cópia da ideia. Loucura, êxtase, logos. Retorno à infância,
coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho,
atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música,
símbolo.”
Começo com Otávio Paz para
dizer de Impossível como nunca ter tido um rosto, de Ricardo Aleixo.
Estive, por dias, consumida
por esta leitura. Não que fosse um livro que não se lesse rápido,
se se quisesse, são setenta e seis páginas de uma bonita edição.
Mas havia tanto ali que era preciso ler devagar. Era preciso ler o
poema. E reler. Só o poema. Não se tratava de nenhum problema de
entendimento, hermetismo algum; era uma questão de sorver uma nuance
que ainda poderia ter passado, como quem quer aproveitar a última
gota de uma boa bebida que não se tem todos os dias. E após
terminar me veio, imediatamente, O arco e a lira, porque pensava: à
luz de Impossível como nunca ter tido um rosto, voltarei àquela
introdução e verei se este livro preenche, caso a caso, aquilo que
Paz discorre como poesia. Obviamente, eu já tinha a resposta. Mas
topei o jogo de cartas marcadas e passei confirmando cada frase.
Em Impossível é impossível
não concluir acerca de uma extremada sensibilidade. Os versos de
Aleixo são a escuta de um silêncio anterior às coisas. De uma
beleza que chega a ser dolorida, porque alcançada no intangível.
“O olhar talvez
comece antes
das pálpebras
se abrirem.”
Sim, antes das pálpebras se
abrirem, é possível adentrar o sólido, auscultá-lo, como no poema
Paragem:
“a velocidade
azul da flor.
o tempo
por dentro
da pedra
no fundo
do rio. o
contrário
de uma
árvore. o
peso da
menor
estrela. o
dia inteiro
antes do
seu nome.
O livro vai do pessoal ao
cósmico (o poeta tanto olha microscopicamente para si, quanto
telescopicamente para o infinito), do filosófico ao erótico e, por
todo tempo, o prazer de sentir uma poesia refinadíssima e
contemporânea, que domina ritmo, sendo também música; que usa as
palavras na demonstração de que seu poeta é um brincante e monta e
desmonta com elas o que quer.
Impossível como nunca ter
tido um rosto é um livro sobre identidade, não à toa, o poeta
começa dizendo deste rosto imaginado, o rosto vazio, e termina por
preenchê-lo dizendo:
“ricardo ~ eu sou ~ filho
desde e para sempre ~ de íris e américo ~”
Neste percurso, entre um
rosto vazio e um rosto completo, com contorno e preenchimento, os
conflitos entre o que é visível e o que é invisível, entre o
claro e o escuro, inserido e não inserido, as difíceis relações
humanas, as desigualdades sociais, a consciência da mortalidade, o
Enigma, o Nunca, o encantamento pela Beleza contida nas mulheres, o
contato maduro com a solidão, a solidão positiva, que não
surpreende, sabida atávica, transmitida desde a primeira
ancestralidade; o amor que “é feito de lascas/ de silêncio// e de
passos inaptos/ para a linha reta.”
Fosse na empolgação do belo
e do genuinamente bem executado, ficaria eu copiando poemas e poemas
do livro numa resenha, mas eu não deveria, e vale mesmo é lê-lo do
início ao fim e tê-lo, presentemente, onde guardamos poesia de
mestres. Não resistindo à tentação, coloco aqui este
O mundo como está
Irrespondível
– o mundo
como está, esta tarde. Hálito
de perguntas no ar. Alento
algum:
três, e não duas como das
outras
vezes. Úmidas, sol dissolvido
entre lábios de sabe-se lá
qual boca. Passo.
Voltando a Otávio Paz, sobre
a poesia, nada vem tanto a calhar: “ostenta todos os rostos, mas há
quem afirme que não possui nenhum: o poema é uma máscara que
oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra
humana!”, então, Aleixo nos dá
) O rosto possível, dadas as
circunstâncias (
Impossível como nunca ter
tido
um
rosto )
* o autor adotou criticamente o processo de edição própria e os exemplares podem ser adquiridos com ele.
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