Por
Adriane Garcia
Por
esta semana, estive lendo o livro Fábulas portáteis (Patuá, 2016),
de André Ricardo Aguiar. Minto, por esta semana, estive com um
portal nas mãos, cujo formato era de livro, mas, na verdade, o que
eu fazia era atravessá-lo, nos tempos intermitentes em que havia
tempo para ler; atravessava-o e me dirigia (era dirigida?) para
lugares, interior de objetos, e situações muito insólitas.
André
Ricardo Aguiar, seja na sua poesia, seja na sua prosa (repleta de
poesia), é um autor da imaginação. Seu cérebro, quando escreve,
pensa na rotação infantil, mas utiliza todas as ferramentas que o
adulto lendo (Cortázar, Kafka, Ionesco, Becket...), aprendeu. O
resultado é um trabalho inventivo, lúdico, potente, que, parecendo
brincar, revela as várias facetas da vida, e elas não são todas
alegres.
Há
um certo disfarce nos contos e crônicas de André Ricardo Aguiar,
uma espécie de filtro sobre filtro, camadas. Por baixo delas, por
baixo do espanto, Aguiar está nos dizendo que a vida é muito pouco
se, como nos ensina Cecília Meireles, não for reinventada. Talvez
seja mesmo insuportável.
O
livro tem oito partes, intituladas Sofá, Despertador, Ovo, Cama,
Chuveiro, Escada rolante, Tamanduá, Sombra. Mas o leitor não pense
que o sofá, o despertador, o ovo, a cama, o chuveiro, a escada
rolante, o tamanduá e a sombra são os nossos velhos inertes
conhecidos assim nominados. Claro que não. Os contos que compõem
cada parte revelam uma criatividade capaz de animar as coisas
inanimadas e fazer cenários e objetos tornarem-se protagonistas de
histórias.
"Despertador
Pequeno
terremoto sonoro, estojo onde se guarda o susto acionado por hora
marcada e violento enfarte de seu mecanismo lógico-neurótico que
pode ser desativado por sistema de travamento ou súbito murro e
palavrões." (p.31)
Entre
o insólito, o terrível, o humor, o trágico, o mistério e o sonho,
Fábulas portáteis leva o leitor a olhar para a realidade com olhos
de primeira vez; olhar que só é comum nas crianças e nos poetas.
O livro de Aguiar é um convite ao mágico e, ao mesmo tempo, por
oposição, a uma reflexão sobre a realidade e seu deserto. O que
Aguiar faz neste livro, para além de nos divertir e assombrar, para
além de nos transformar em projetores de filmes surrealistas que se
passam dentro de nossa própria cabeça, é que nos perguntemos:
– Quando
foi que perdemos isso? Quando foi que, de modo tão infeliz,
crescemos? Quantas vezes nos deixamos esquecer da nossa capacidade de
ver através dos espelhos?
Um
livro, sobretudo, delicioso.
“Composição
infantil
Eu
capturava réstias de sol com vários espelhinhos; consegui guardar
uma delas, sem o consentimento da lua, altas horas da noite. Em
compensação, na manhã seguinte, vi uma réstia de sombra, de sol
apagado.
Eu
inventava doenças imaginárias. Uma vez peguei febre pelo cabelo.
Causava arrepio e palavras que saíam de mim que ninguém entendia.
Na verdade, causavam Intendimento, com i mesmo. De outra vez, fui
buscar num quarto lotado de fotos antigas uma doença chamada
Mnemonia. Lembrava de coisas da minha vida que não tiveram tempo de
acontecer, mas que aconteceriam se eu tivesse mais tempo. Com doze
anos, lembrei o suficiente para criar a história de três cidades,
incluindo moradores, genealogia, etc. Mas a doença que mais me
derrubou foi susto familiaris. Eu me contagiava de tios, primas,
avós, tudo dos séculos de trás e em cada tosse ou espirro me
nasciam mais parentescos.
As
senhoras, ao fim da tarde, varriam folhas e formigueiros. Os moços
varriam conversas e causos. O rio varria a água. A tarde varria o
sol. Só eu vivia nos invernos da casa, contando quantas formigas,
quantas gotas d’água fugiam para o indefinido. Minhas ocupações
do ócio levavam horas. Pensava em sofás que sofriam de asma, almas
do outro mundo dentro da cisterna, punhos de redes que esmurravam
paredes.
Penso
que adoeci de vida, quando nasci.”
(p.
105/106)
***
Fábulas
portáteis
Contos
André
Ricardo Aguiar
Ed.
Patuá
2016
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