“Para que então ter um corpo se é preciso
mantê-lo trancado num estojo,
como
um violino muito raro?”
(Katherine Mansfield, em Bliss)
Por Adriane Garcia
O livro Exercícios de fixação (Publisher
Editora), de Antônio LaCarne, é composto por dezessete contos. No primeiro
deles, Cair demais, o narrador cita
Katherinne Mansfield, mais especificamente seus personagens Bertha Young e
Srta. Brill. Chamam a atenção as duas personagens citadas porque os temas que
aparecem nesses contos de Mansfield (Bliss
e Mrs. Brill), são os que atravessam não só o primeiro conto de LaCarne,
como os demais de alguma forma. Com Bertha Young critica-se a ordem
estabelecida, expõe-se o desejo que arde, cujo êxtase transborda amor e
erotismo, mas tudo é mudez e nada se realiza. Com Srta. Brill, penetra-se na
solidão, na inadequação e na invisibilidade que ela sente e só ao leitor
comunica. Assim como Mansfield, LaCarne conhece o monólogo interior de seus
personagens.
Jorginho
(Cair demais) é o jovem que, indo a
uma festa, sem franca vontade, se vê às voltas com seu “precipício existencial de dúvidas”. A vida lhe parece sem sentido,
a “caçada” lhe parece sem sentido, assim como o sexo pago, do qual acaba por se
arrepender. A solidão acompanhada é a presença constante e o personagem se
debate entre ser ele mesmo e fazer o jogo social. Por fim, um evento inusitado
mostra a Jorginho que o homem que ele deseja e de quem sente inveja pode também
ter o seu próprio “precipício existencial
de dúvidas”.
Em Shangai não me espera o personagem
chamado “O príncipe selvagem” antagoniza a alcunha com seu modo de vida, nada
selvagem, tão domesticado; LaCarne, com fina ironia, revela as vidas monótonas
enquanto não decidem realizar seus desejos. Tal monotonia é quebrada pelo
narrador em primeira pessoa de “Enquanto
eu lia Balzac”, já que as contingências da vida, a “troca de olhares que me impediu o sono e a leitura dos meus romances
policiais favoritos”, modificam ao menos os estados de espírito. É então
que chegamos a Arlete no vazio.
Arlete no vazio é um dos
pontos mais altos deste Exercícios de
fixação; talvez porque neste conto o livro encontre a confluência do
conjunto. A mulher velha, cujo tempo passou sem que se desse conta e que,
agora, tarde demais, deseja o cumprimento impossível. Arlete é, sozinha, um
poço de lembranças. Cuida da rotina diária como quem cumpre um calendário de
condenação, pois a vida sem amor é sempre condenação, e ainda há um corpo vivo.
LaCarne dá a Arlete uma complexidade riquíssima, o que torna sua
verossimilhança assustadora. A imagem de uma mulher que se dedica à casa (fuga)
como um cachalote em seu mar é poderosa, e o conto se realiza em beleza e
potência.
Em A aranha, LaCarne explora sua capacidade
de nos levar ao inusitado. Um casal está na cama transando, enquanto uma
caranguejeira talvez trame um ataque. De parágrafo em parágrafo, LaCarne
surpreende o leitor. O leitor tece um caminho que é logo traído, e assim até o
ótimo final. Em seguida, o livro apresenta O
homem de Higienópolis, conto engraçadíssimo porque a reiteração do narrador
de que aquele fato não aconteceu consigo, mas com seu personagem, leva o leitor
à desconfiança de que foi sim o narrador que levou o garoto de programa para o
banco traseiro do carro. Finalização também inusitada.
Em Os gatos, LaCarne presta sua homenagem a
estes seres sempre dignos de homenagens, e explica bem o porquê. À pureza e
sinceridade dos gatos, o autor opõe o desajuste e a falsidade humana. Já em Boneca come-come, o personagem,
aparentemente homem acima de qualquer suspeita, decide se comprará ou não um
raticida para matar uma pessoa, um segredo que esconde outro.
No Encanadores não desentopem enganos, o
protagonista e o encanador se entregam ao sexo e ao amor possível, ali mesmo,
sem aviso prévio e sem referências, a paixão no escuro. Neste conto, LaCarne
usa recursos de prosa poética, metáforas que tornam o texto muito bonito e
tocante, conseguindo ampliar o sentimento de solidão dos personagens, mas vou
abrir um parágrafo específico para o conto Lápis
de cor:
O título Lápis de cor é mais um exemplo de como
LaCarne sabe “trair” o leitor. Espere que lápis de cor evoque tudo o que lhe
evoca e, certamente, será traído. Aqui, LaCarne conta a história de Guto, o
menino de sete anos que sofria calado na escola. “Criança viada”, bolsista
filho de mãe empregada doméstica, Guto passou pela crueldade do preconceito de
classe e da homofobia, juntos. O conto, além de revelar características abjetas
de nossa sociedade nos leva a uma empatia imediata com Guto, fazendo com que o
leitor compreenda sua drástica medida de defesa.
Em Dias de promoção, um homem se pega a
pensar alto na seção de hortaliças e legumes de um supermercado. Sua frase “onde estão os pepinos?” desencadeia a
reação de um garoto e a reflexão do protagonista. A pergunta seria notada se
quem a fizesse não estivesse na contramão da normatização tradicional dos
gêneros? O garoto teria notado se para ele também a situação não estivesse sob
o estigma de uma sociedade homofóbica? Em um conto pequeno, simples, de algo
cotidiano numa terça-feira e, a princípio, sem qualquer importância, LaCarne
consegue mostrar o que “paira no ar” todos os dias.
No conto A baleia, mais um personagem tocado pela
invisibilidade. O encontro com a baleia, encalhada na praia, funciona como uma
epifania, em que a vida e a morte do protagonista se confundem com a vida e a
morte da baleia. Dizem os que quase morreram que nossa existência nos passa
como um filme nos últimos minutos. Essa é a experiência do protagonista que,
imiscuído na possível morte do cetáceo, olho no olho, se revê em infância e
abismo.
Em Extraterrestres, o autor trabalha também
outra recorrência: a de que não há sinceridade, a de que o mundo é de
convenções e falseamentos das vontades. “Só
os extraterrestres são sinceros”, ele avisa, e constrói um conto em que um
homem, com um sorvete na mão, aguarda o outro que não vem. Enquanto espera
aquele que “não reinventará o desejo de
compensar o atraso com um abraço extra, um sorriso extra, um pau duro extra”,
repara todo o ambiente e as pessoas ao redor, e essa observação se mistura aos
seus sentimentos, fazendo do que era relato realista uma metáfora do mundo
interior.
Ocultismo é mais um conto com um
humor melancólico delicioso. O narrador tenta escrever uma história que envolve
magia e comunica isso ao seu interlocutor, mas acaba desistindo e pedindo
conselhos sobre sua vida amorosa cujo estado chama de “solteirice alarmante”. Estrabismo
alucinante, o conto na sequência, traz um personagem que agora começa,
felizmente, a aparecer mais amiúde na literatura do país, mas que é tão comum
na vida real. Os homens casados, os chamados “homens de bem” acima de qualquer
suspeita, que praticam sua homossexualidade às escondidas. LaCarne narra com
grande sensibilidade essa história de amor em que um homem pergunta ao outro “Você quer mais?” e é tudo que se quer,
mas no reino do impossível. Um conto lindíssimo em que a insistência na frase “Forcei todas as barras possíveis”
consegue o efeito de penetrar no urgente desejo de amor do narrador.
Em Crise de insônia, a morte de um amigo e
a prisão de outro desencadeiam um estado de torpor no narrador: “Eu queria algum acontecimento sem urgência,
algo de que eu pudesse tomar conta sem insônia”. O conto mostra a
dificuldade de se relacionar com um mundo cheio de vicissitudes e o papel da
rotina como amortecedor de tragédias pessoais.
No último
conto do livro, Pênis gigantesco, um
morador de rua exibe orgulhoso seu pênis gigantesco, seu único e valioso bem. A
vizinhança já parecendo acostumada, ou mesmo admirada de poder ter tal
monumento pelos arredores, deixa o mendigo por ali, oferecendo até comida.
Porém, num determinado momento, ele é denunciado à polícia por uma mulher. É
interessante que LaCarne está menos preocupado com o fato do que com a
motivação. Aqui, mais uma vez, a luz é lançada para fazer suspeitar das
motivações.
Exercícios de fixação é um
livro em que os personagens, na sua maioria, estão fora da heteronormatividade.
Para além da denúncia de uma sociedade hipócrita e que promove muito sofrimento
via preconceito, os contos de LaCarne trazem os temas universais do amor, da
solidão, do deslocamento, da morte e da liberdade. Seus personagens estão na
experiência da incompletude, como se pedissem um tanto de compreensão. Essa
que, no fundo, todos nós pedimos. Há um destaque para a libertação do corpo,
esse primeiro lugar de poder, negado desde cedo. Mesmo não alcançando a
plenitude de seus desejos amorosos, os corpos, nos contos de LaCarne
experimentam, buscam a reiterada sinceridade.
Se os
exercícios de fixação são aqueles que nos fazem aprender, pela repetição, uma
lição, LaCarne acerta bem no título, sem ser em nada repetitivo. É a vida que
está, reiteradamente, dizendo algo aos seus personagens. Seus personagens
estão, reiteradamente, dizendo algo para nós. Nada deveria ser tão caro, tão
inacessível: “A vida em si poderia estar
em promoção”.
“Ele (que não sou eu) percorria o centro da
cidade de madrugada em busca de rapazes que pudessem satisfazer o seu desejo.
Cada quarteirão era delimitado: havia as esquinas das travestis e as esquinas
dos garotos de programa. Mas ele (que não sou eu) dirigia seu carro lentamente,
numa caçada, muitas vezes andando em círculos, em busca do rapaz ideal. Nem
sempre ele (que não sou eu) explorava o prazer da noite sozinho, tinha um casal
de amigos como cúmplices. Ao abordarem os rapazes, ele (que não sou eu) tomava
a iniciativa de perguntar o preço, o tamanho e se poderiam exibir o que existia
dentro de suas cuecas. O casal de amigos permanecia em silêncio, talvez
controlando o desejo, observando discretamente se alguém ao redor se
aproximava, pois a cidade era perigosa. Porém, ele (que não sou eu) nunca se
decidia por nenhum rapaz, apenas se contentava em vê-los sem roupa por alguns
segundos, desesperados por dinheiro. Muitos recusavam qualquer amostra grátis
de suas qualidades específicas, pois exigiam algum pagamento prévio. Então uma
bela noite, ele (que não sou eu) abordou um homem por volta dos trinta anos que
dizia ser de Higienópolis. A maneira como ele falava e a ênfase na informação
desnecessária porventura evidenciaria isso, mas o interessante era que a voz
daquele homem era extremamente sexy. E ele (que não sou eu) convidou o homem de
Higienópolis para o banco de trás. Quem dirigia o carro era o casal de amigos,
um no volante e outro no banco do passageiro. No banco de trás o homem de
Higienópolis tirou a camisa, baixou a bermuda de nylon e se deixou ser
manipulado ali mesmo. Mas ele (que não sou eu) antes de atingir o êxtase,
lembrou que durante toda a sua vida havia esperado por um grande amor,
independentemente de qualquer dote físico, e que aquilo era um exemplo
gigantesco de hipocrisia íntima. O programa foi encerrado ali mesmo, e o rapaz
de Higienópolis saiu alegre e satisfeito ao receber uma nota de vinte reais de
um otário (que não sou eu) por menos de três minutos de trabalho.”
(O homem de Higienópolis, p. 35/36)
***
Exercícios de fixação
Antônio LaCarne
Contos
Publisher Editora
2018
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