Por Adriane Garcia
Muita poesia em sessenta
páginas: Extremamente
barulhentos certos assuntos, por exemplo
(editora Urutau) traz 23 poemas que mantém o leitor em alerta. Sim,
alerta. Da poesia de Pedro
Bomba nenhuma
palavra pode ser perdida; nelas, no encadeamento dos versos e
sentidos, a surpresa, o alumbramento, o susto se tornam parte do jogo
da leitura.
O livro, já no primeiro
poema, parte da ideia quântica de energia e probabilidade. A palavra
é esse “quantum” que desperta outros, motor e criação. O que
parece aleatoriedade chega no exato lugar que o poeta premedita,
dando a impressão de que todo o caminho trilhado só poderia ter
dado ali. Ou não. Na verdade, alquímico e brincante, o
poeta poderia
ter nos oferecido o resultado que quisesse, mas sempre faz isso de
modo inusitado. É esse trabalho que Pedro
Bomba utiliza em
toda a coletânea, no qual a palavra tem energia suficiente e
surpreendente para trazer outra:
“ aqui instaura-se a
imagem microscópica da matéria quân-
tica em escala
subfrontal descritas tal qual o fenôme-
no macroscópico diversos
casos apontam que a palavra
quântica quer dizer a
quantidade na mecânica a palavra
refere-se a uma concordância
discreta que a presunção atribui
a certas racionalidades:
1. como a energia de um
elétron contido num átomo em repouso
2. como a energia de seu
dialeto contido num átomo de meu
pouso
(...)”
Há um descompasso entre o
poeta e o mundo. Na “gruta
de chauvet” a
primeira pintura rupestre registra o homem inconsolável e
inconstante. A arte é remédio e sintoma e, também por ela, o poeta
registra sua crítica contumaz ao capitalismo. Ao ser que não possui
propriedade alguma, a palavra surge como representação – um modo
de possuir a si, sua própria história. Os poemas guardam coisas que
não temos ou nos foram tiradas e que passam a ser nossas. Em
“desenho”
A menina indígena desenha sua casa arrastada pelo trator, toda a
vida se recria em seu desenho. Tanto a injustiça social quanto a
violência contra os vulneráveis permeiam os mesmos versos cujo
lirismo alcança imagens de beleza e desconstrução do senso comum:
“à margem da br dois quatro
sete quilômetro cinco
deita o desenho feito pela
criança da aldeia
aqui descansa nossa casa ou a
representação dela
observem nesta imagem como
olham os animais
são olhos espantados embora
estejam de costas
sei pelo cheiro colorido em
seus focinhos (...)”
Poeta inquieto, nos versos de
Extremamente
barulhentos certos assuntos, por exemplo,
a insaciedade da mente, a busca maníaca pela palavra, pelo verso,
pela própria poesia, a necessidade de nominar as coisas, os gestos,
os atos se tornam também tema. Não há função alguma para a
poesia dentro da engrenagem colocada (eis sua rebelião inata), esta
que nos rouba essência; essência que nem chegamos a descobrir qual
é:
“ (…) penso como seria
se a gente não precisasse ser
alguma coisa nessa vida
digo
seria como pensar
se na vida a gente fosse
alguma coisa
sem precisar ser (…) ”
Pedro Bomba
lança um olhar para aquilo que se recusa a participar do que está
posto, para os que podem ser confundidos com os loucos ou os
descartáveis: um homem que dorme no colo de uma estátua ou um pano
de chão feito com uma camisa velha. Também para os rebeldes, poetas
da existência, como aquele personagem do poema “distraiu
jesus e roubou um carro”,
uma espécie de Exu, mensageiro que instaura a quebra no cotidiano e
a profanação na vida comezinha da cidade. Cidade que tanto pode ser
imaginária quanto real, tanto a cidade de origem, quanto a cidade
onde se está.
Também sobre a geografia
afetiva, o poeta se debruça. Nascido em Aracaju, Sergipe, e hoje
vivendo em Belo Horizonte, Pedro
Bomba traça seu
mapa tecendo referências à cidade natal e aos “viadutos”
internos; pontes que o ligam aos lugares para onde foi. O poema “mapa
de uma cidade impregnada”
é cheio de lembrança e saudade:
“(…) 2. viver vinte e sete
anos dentro da cidade que te levou ao país
pela procura de algo de alguma
capital de algum mundo no
interior da poesia. (...)”
Ler Extremamente
barulhentos certos assuntos, por exemplo
é ficar por instantes absorvido pelo poder da poesia. Um livro de
encontro, desses que encontramos a humanidade de alguém na nossa
humanidade.
No mundo quântico, não
existe separação e a forma é uma espécie de ilusionismo dos
sentidos; mas sem os sentidos, não haveria o que chamamos de mundo,
apenas um mar de átomos. O mundo precisa de nós para ser mundo? Se
tudo que existe é resultado de nossas abstrações (nem mesmo o
dinheiro existe – crença na qual todos “combinaram”
acreditar), por que vivemos tão miseravelmente e não criamos
abstrações melhores? A poesia é um desses fazeres inúteis que
procura dar conta dos nossos sentidos duvidosos, dos nossos mistérios
profundos, daquilo que não sabemos – linguagem – se é maldição
ou bênção.
Pedro Bomba
contribui com sua rebeldia e estudo, inversão e potência,
irreverência e refinamento, emprestando à palavra sua mente, corpo
e voz. Poesia para ler
e reler.
morar na literatura
resolvemos o problema com a
dívida do banco
decidimos ontem que não
iremos pagar
faremos poemas eletrônicos
nos extratos e saldos
e depositaremos nos caixas
os funcionários lerão os
versos sem fundos
nada escrito nada nadinha
só viagem da minha cabeça
resolvemos ontem que vamos
morar juntos no mesmo barco
eu confessei sobre meus
medos e lemes e cais meus sais
falei de quando quebrei o
braço três vezes
e como um empurrão é uma
coisa potente
falei do murro na cara que
levei do ex namorado da menina
que eu me apaixonei na
escola, os óculos caíram
e eu não vi mais nada
o bom de apanhar numa briga
é que para o resto da vida
a possível vingança será
instaurada
mas eu prefiro as noites e
os encontros
o prato que se come frio é
demais para os meus sentimentos
resolvemos correr riscos e
eu opto por um apito
ao invés do medo
o som do apito vai e volta
você chamou atenção
isso que vai e volta é um
boomerang seu doido
pode ser também o estado
permanente
dos últimos três anos
afirmei
o qual faço poemas sobre
coisas
que não existem palavras
revuntáveis
coisas que eu vou longe
demais
e no fim volto como se
estivesse recitando poemas
para uma multidão de
pessoas
elas me olham eu as vejo
e quero que todas elas te
conheçam e
criem carinho por sua fome
contínua
por preferir verde e roxo
ao invés de propriedade privada
resolvemos morar na
literatura um do outro
é isso que esse poema quer
dizer
é algo gravíssimo, um
erro, um equívoco
um descuido literário
morar na literatura um do
outro é como confiar no vento
quase ninguém consegue
enxergar, mas é óbvio que está aqui
vejam como balançam os
versos de meu cabelo.”
***
Extremamente barulhentos
certos assuntos, por exemplo
Pedro Bomba
Poesia
Editora Urutau
2018
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