Por Adriane Garcia
Uma poesia de impacto. Genealogia das mulas, de Marília Kosby, livro que compõe a coleção Biblioteca Madrinha Lua, da editora Peirópolis, já começa nocauteando pelas epígrafes. Os textos utilizados são de Receita para fazer mulas, do folclorista Luiz Carlos Barbosa Lessa. Uma grave violência ali se anuncia, violência naturalizada às custas de ser possível se obter o animal híbrido, mestiço, o muar, a mula. Um sadismo lancinante. No rastro da epígrafe chegam-nos os versos. O que leremos nos dirá sobre o poder e seus modos de se perpetuar. Diversas analogias, metáforas e metonímias serão criadas a partir da relação entre origem e violência, poder e subalternidade, opressão e resistência. A denúncia colocada por Marília Kosby parte do modo cruel de se tratar animais, plantas, mulheres, crianças e todos os grupos humanos que se estabelecem a partir da diferença. É o patriarcado o centro desse poder tentacular, que hoje se confunde com o capitalismo, mas que já se confundiu com outros sistemas econômicos no decorrer da história, gerando a população dos vulneráveis. A matança registrada nos versos da poeta é resultado de uma cultura patriarcal machista, misógina, racista, homofóbica, capacitista, bélica, especista e infanticida.
Riquíssimo em metáforas, Genealogia das mulas retrata a população brasileira, formada da mestiçagem em um processo histórico de estupros, sequestros, separações e casamentos forçados. Uma sociedade que só podia resultar em violência a partir de seu cerne formador cujo motor é a continuidade e não o rompimento. A voz lírica pergunta: “a que ponto outro chegaríamos?” Assim, lemos um poema que fala do episódio ocorrido em 2021, do incêndio à estátua do bandeirante Borba Gato, facínora tratado como herói (em um país onde até o torturador Ustra o é). O atiçamento do fogo à estátua resultou na prisão dos trabalhadores responsáveis pelo protesto, sob a argumentação hipócrita de defesa do patrimônio público, quando sabemos que nosso patrimônio público rui em cada cidade que se passe, sem qualquer preocupação do poder público de modo geral. Em seus versos, Marília Kosby reflete: “as chamas são rastros/das mulas/desmioladas todas// as mulas sem cabeça”. No enfrentamento do poder, as mulas que reagem só podem ser mulas ousadas, “desmioladas”, que se arriscam diante do mais forte, sabendo que é luta perdida.
Utilizando imagens inusitadas e fortes, como as figueiras, árvores simbólicas (as mais antigas – as que tudo veem), sorvendo o sangue derramado sobre a terra, a poeta conta do poder de vida e morte do homem sobre a mulher e do poder da memória viva: “mandou enterrar a filha/ ainda viva sob a soleira da porta”. Aqui a ambiguidade alcançada pelo posicionamento palavra/verso, pois tanto dá-se a entender que o pai enterrou a filha viva sob a soleira da porta, quanto ela conservou-se viva em memória. A constatação da voz lírica é a de que o sentido da história tem sido de repetição: “a testosterona de ciro pulverizada /sobre o sertão da babilônia” vai até “o mitômano dando um giro de moto/pelo planalto”. Desse poder patriarcal a heteronormatividade massacra a população LGBTQIA+. Nos versos de Marília Kosby, a mulher lésbica resistirá com seu amor, ainda que haja uma desesperança por o humano obedecer a uma vocação de pensar “existir/ solução para os males/ do mundo que julgamos/ conhecer” e não conhecemos. Nisso reside o preconceito: não conhecer. Nossas soluções muitas vezes baseiam-se em nossa ignorância.
Se os muares carregam o estigma da linhagem obtida no abuso, são também eles/elas que detém a força e o conhecimento da sobrevivência nas piores condições. A voz lírica nos diz de um conhecimento ligado à natureza e suas forças elementais. O conhecimento do tempo como um relógio de sol, tempo natural que conhece as horas dos frutos. Aqui, a visão dos povos originários de que tudo está ligado, os elementos da natureza não se sobrepõem, mas se completam, simbioticamente. A humanidade não é algo apartado, como erroneamente se pensa e se destrói o planeta, nem mesmo apartam-se os tempos passado, presente e futuro. A poeta nos traz a lembrança da ancestralidade: “dos povos aborígenes/ tamborilando no cérebro/ tumoroso de minha avó”, resistindo a tanta tentativa de apagamento.
Marília Kosby, ao utilizar o vocábulo e o animal mula como centro de gravitação de seus poemas, lembra-nos a palavra de procedência pejorativa que por muito tempo classificou grande parte da população brasileira: as mulatas e os mulatos. Porém, encontra nesta origem não mais o pejorativo, mas a força dessa origem no que ela pode ter de consciência da violência histórica. Suas ferramentas para esse trabalho são múltiplas, de grande domínio poético. A poeta usa metalinguagem, fragmentação da forma quando o tema trata de fragmentação, deslocamentos quando o tema leva à voz lírica insone, deslocada, gerando trocadilhos deliciosos como: “deixava-me as tulipas enlatadas as pupilas digo/dilatadas”. Em sua estante, que comporta Szymborska ao lado de Audre Lorde, surgem muitos diálogos com outras poetas, como por exemplo este diálogo com Adélia Prado, num tom de era só isso que me faltava, já não fosse a carga da mulher tão pesada: “Muda já fui/ surda já fui/ cega/ agora, desdobrável…”. Em outro trecho de deslocamento interessantíssimo, a poeta ao contar de uma ave, provavelmente exuberante, troca o adjetivo de lugar: “era uma fome exuberante”. No bonito poema amoroso Duas jiboias, a voz lírica ao falar de um amor recorda um outro (invasão de lembranças), e quem lê não sabe mais qual amor viveu a história relembrada. Marília Kosby faz excelente arranjo posicional dos versos, sua partição para o melhor aproveitamento de ambiguidades: “aborto, nós não amamos/ necessário é, mas não conheço quem ame/ corpo algum” e é constante o uso de paradoxos muito bem elaborados com síntese notável. Aqui, por exemplo, no poema Cólera: “a água pode acabar/ com tudo”. Nas pouquíssimas rimas que a poeta usa, o faz de maneira exemplar: o efeito de humor é conseguido com palavras de idiomas diferentes e de forma inusitada, trazendo na referência o poeta satírico romano (lembrando que sátira tem na sua origem “saciado”): “e a gente doente e com fome/ora, quem dera fosse um clown/ vivêssemos a sátira do juvenal”. Não falta ainda a ironia como arma linguística e o uso do particular para o universal: “já me quebrei toda” até “cacos de américa do sul pra cá/flancos de África bem pra lá”.
Vocês
que pensam
que
a Terra está cheia demais
porque
essa gente preta e pobre
não
para de se reproduzir
–
vocês que sonham
ardentemente
com a volta
daquele
tempo quando
oligofrênicos
parem
de matá-los
cessem
esse extermínio
essa
sangria frigorífica
esse
banquete de moscas
onde
um vocês matam,
vis
escrotos ignóbeis,
outras
três nascem.
srs.
pulhas, é uma lei
da
natureza onde se ora, onde se chora
com
quem se come
É
uma lei da natureza, canalhas!
Que
encontra –
pusilânimes! –
pulso
onde
vocês, abjetos, apostam na morte!
***
Já me quebrei toda
os
dois braços de uma vez
e
a cara por consequência
as
mãos fraturadas empurrando o chão em vão
quebrei
a cara
dos
colegas e os cascos no chão
pedrento
de minas
me
esfolei no ouro toda
trago
quebrado um pulmão
o
sangue um oceano
rasgando
a pangeia
deslumbre
de horrores
qual
não é o alçapão de maravilhas
ampliou-se
o mundo
cacos
de américa do sul pra cá
flancos
de áfrica bem pra lá
ampliou-se
o mundo
multiplicaram-se
os precipícios
e
os obstáculos
à
revelia nós
nunca
mais paramos
de
refazer aquele continente só
sob
a sola de nossos pés
os
cascos duros de mulas sobre
***
Genealogia das mulas
Marília Kosby
Poesia
Coleção Biblioteca Madrinha Lua
(curadoria de Ana Elisa Ribeiro)
Ed. Peirópolis
2023
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