por
Adriane Garcia
Sabemos
que não apenas lemos os livros, mas que eles nos leem. Um livro com o qual nos
identificamos de alguma forma, que nos apreende, que nos leva com ele, é de
certa maneira um livro cujos elementos reconhecemos. Neste reconhecimento – e
nos bons livros – encontramos muitas surpresas, novas formas de organização,
reflexão, (re)visão do conhecido, o encontro com o desconhecido. Assim, uma
figura me assomou de imediato na leitura de Caminhando com os mortos, de
Micheliny Verunschk: a de Santa Quitéria e sua cabeça degolada.
À visão
de Santa Quitéria me vieram à mente os estudos de Donald Winnicott
sobre a psicose. Para o pediatra e psicanalista o bebê precisa de um ambiente
suficientemente bom para integrar mente e corpo, cabeça e tronco, mundo de fora
e mundo de dentro, reconhecendo os limites de cada um desses mundos. A
qualidade da maternagem é essencial no processo, carregar e ser apoio, borda
que protege do precipício, alimento para a ilusão de onipotência do bebê e,
depois, falhar com amor, para que a ilusão se desfaça de modo saudável, mas com
a marca indelével do mágico que o bebê pensa ter sido. No psicótico (e no
borderline, fronteira entre a neurose e a psicose) acontece uma falha para o
desenvolvimento emocional, e uma das possibilidades causais é não ter havido um
ambiente suficientemente bom (holding) para integrar sua identidade, para
mitigar os danos de uma cisão e promover uma pessoa total. Dinâmicas familiares
perturbadoras e disfuncionais podem gerar a degola psíquica.
Fazendo
uma breve sinopse, Caminhando com os mortos conta uma história que se
passa em um vilarejo (local de produção algodoeira e de cestaria de taboa), na
qual crimes bárbaros vêm acontecendo. Nas primeiras páginas, já estamos diante
da morte de uma filha, Celeste, queimada viva pela mãe Lourença.
O crime fora incentivado pelas palavras do pastor de uma igreja neopentecostal
que se instalou no lugarejo e que converteu grande parte da população não às
práticas comunitárias e solidárias de Jesus Cristo, mas ao medo do Diabo.
Há uma narradora tentando ordenar essa história, buscando suas origens, aquilo
que desencadeou toda a série de tragédias locais que, sabidamente, Verunschk
nos dá para que vejamos o universal: “Diferentemente das moscas, porém,
ninguém consegue ter uma visão total que explique o que aconteceu”. Do
parcial para o total, do vilarejo para um país, de uma casa em ruínas para
trazer tudo que foi morto à vida, uma história de muita dor se ergue. Uma
história também de denúncia e de esperança: “Se Deus é grande, o mato é
maior.”
Do que é
velho, passado, fantasmagórico e espectral, surgem esses mortos-vivos, e muito
do que podemos pensar a respeito do papel da mulher em um patriarcado, em uma
sociedade que dela tudo exige mas nada apoia, pode ser lido nesse romance de Micheliny
Verunschk. Contudo, há ainda algo da ordem do sutil e do implícito que
perambula suas páginas: o transtorno mental. Em especial, Lourença tem
uma tendência à cisão, à despersonalização, ou seja, em mãos erradas, sem
tratamento e com o agravamento de suas condições materiais e psíquicas Lourença
pode ser uma bomba para os outros ou para si mesma: “Então não, não consegue
ouvir direito, com clareza, seus ouvidos estão tapados, submersos, o zumbido na
cabeça ocupando espaço demais, e então sente que ela, a cabeça, está solta(...)”.
Noutro trecho: “Por um momento, a cabeça retorna para o lugar e ela volta a
ter um corpo todo seu (...)”. A ideação suicida acompanha essa personagem
todo tempo.
O que
podemos depreender da personagem Lourença (mas não só dela, pois quase
todas as personagens passam por grandes traumas, por aquilo para o qual não se
encontra qualquer simbolização, pois, maior que o sujeito, o atropela sem
palavras) é que sua condição de infância, regida pela violência machista/misógina
que repassa para sua filha Celeste, só pode encontrar o desfecho de mais
violência, plena de continuidade, nunca de interrupção. E que diante de um
trauma que lhe encheu de culpa e ódio (o destino de sua filha Quiterinha),
Lourença jamais encontrou o apoio que pudesse levá-la a simbolizar e
elaborar o evento traumático.
É cada
vez mais estudada a relação entre religião e transtornos mentais. Ainda que a
religião seja um amparo em momentos críticos como luto, dependências químicas,
depressão, ansiedade, perdas graves de modo geral, pois a fé tem um papel no
alívio de transtornos psíquicos, não deve substituir tratamentos de saúde
mental especializados, podendo mesmo agravar os problemas. É o que se vê
acontecer com Lourença que, em seu momento de fragilidade extrema,
encontra um dos inúmeros líderes religiosos desonestos que infestam o
país. Ainda que a história que Micheliny Verunschk nos conta não seja
exatamente uma história sobre a loucura, ela o é também. A falta de condições
financeiras para pagar os serviços de saúde mental, a falta de uma rede
pública de atendimento amplo, a falta de conhecimento sobre os transtornos mentais
prejudicada pelos vários tabus que enevoam o tema, leva a pessoa transtornada a
buscar na religião o acolhimento que não encontra em nenhum outro lugar. Porém,
líderes religiosos não são – a priori – habilitados a resolver questões de
saúde mental, nem mesmo parecem estar empenhados em resolvê-las encaminhando os
fiéis corretamente. O que acontece em Caminhando com os mortos, a arte
imitando a vida, é um grande oportunismo com relação ao drama de Lourença.
A figura do Diabo, também do Deus megalomaníaco caem muito bem
para psicóticos, borderlines, ideias paranoides, alucinações e delírios, pois
se encaixa em simbolizações que querem ser feitas e que precisam de algo
externo para nominar aquilo que está dentro, mas sem a percepção das fronteiras
dentro/fora. Daí, a perfeição de uma metáfora neste romance, a santa degolada
carregando a própria cabeça.
Segundo a
OMS, dados de 2022, o Brasil é o país mais depressivo da América Latina,
sendo que nas Américas , perde apenas para os EUA. O Brasil também lidera os
números de ansiedade. A relação transtorno mental/religiosidade passa pela
oferta de esperança. Quando essa esperança é manipulada, como vemos em Caminhando
com os mortos, um grande perigo se apresenta. O delirante não sabe mais
reconhecer a realidade compartilhada por todos. Sua realidade delirante é a
única que existe. Lourença, que vem de uma dinâmica familiar e social
perturbadora e disfuncional é acolhida por uma instituição que continua
dinâmicas perturbadoras e disfuncionais. Em nome de Deus, a mulher –
sempre subjugada – matará a filha por não suportar dores aniquiladoras. Diante
do sentimento de aniquilação, a mulher que não tem palavras para elaborar o
trauma encontra a palavra que o pastor lhe empresta. Esta palavra é demônio,
libertação do demônio, o demônio na pele do diferente, do que pensa e age
diferente, tendo o texto bíblico como referência de padrão. Para Lourença
é uma questão de sintoma, para o pastor é uma questão de dinheiro e
poder.
Desintegrada,
Lourença nos mostrará toda a tragédia de sua história ao reduzir-se ao
extremo vulnerável em uma delegacia, na frente de outro homem: o delegado. Aqui
Micheliny Verunschk nos traz outro de seus temas recorrentes, a tortura
praticada por policiais, agentes de poder, os resquícios jamais apagados da
ditadura militar em nosso país. Em todo lugar em que Lourença esteve,
foi repetida a falha ambiental. Quando se junta patriarcado e suas violências
com condições materiais difíceis de sobrevivência, o mundo das mulheres se
torna um mundo infernal e – em consequência – o inferno alcança as crianças. Li
Caminhando com os mortos como um livro que relaciona religião e
transtorno mental, religião e política, religião e economia, religião e poder
de homens.
Com a
capacidade de nos comunicar as cenas nos mínimos detalhes, pintando os cenários
de forma a vermos até mesmo sua vegetação, dando um ritmo que amplifica a
sinestesia do texto em um jogo caleidoscópio que monta a estrutura, Micheliny
Verunschk mais uma vez nos entrega uma obra literária importante. Sua
linguagem artística nos transporta para o que chamamos de “em carne viva”.
A artista plástica Adriana Varejão tem uma obra exposta no Museu de
Inhotim chamada Linda do Rosário. Nesta obra – também inspirada em
uma tragédia – uma parede azulejada em ruínas, após um desabamento, mostra por
dentro suas entranhas, sua carne sangrando. Caminhando com os mortos me
remeteu a essa obra, nas metáforas que traz: “A casa trocará de pele como um
lagarto, deixando à mostra músculos e gordura e tendões avermelhados sem reboco”.
É assim, deixando à mostra as feridas de uma sociedade que erra feio, que Micheliny
Verunschk vai desenhando um país degolado, capaz de toda catarse, mas
incapaz de elaboração.
“Os
ombros de Lourença estão caídos e os braços pesados sobre o corpo dão a
impressão de que os ossos dos braços, pescoço, costelas vão todos se ajuntar
sobre o colo, como se sob alguma força eles se tivessem desconjuntado e a pele
e a musculatura desprendido, um tecido amontoado em refolhos, a cabeça
pendurada e os cabelos em redemoinho, um caroço engelhado. A mulher, uma boneca
de pano, mal-acabada, encardida, afundada na cadeira da delegacia, o estofado
azul desbotado, a espuma do assento já fina pelo uso despontando nas bordas
desgastadas. O ventilador ligado numa música monótona quebrada a cada retorno,
da direita para a esquerda, da direita para a esquerda, e um estalido.
Não foi
minha filha que eu matei, não, doutor. O que eu fiz foi outra coisa. Eu não
matei. A menina vai se levantar. O senhor vai testemunhar esse milagre da
salvação. No terceiro dia. O senhor vai ver, ela vai fazer a sua páscoa e vai
voltar pela graça de Deus. Matar Letinha? Matei, não, senhor. Jamais. O
verdadeiro crente expulsa o espírito maligno, o senhor sabe, eu sei que o
senhor sabe. O senhor já viu o espírito maligno? Já percebeu com ele age? É
esperto, manhoso, ele. Anda pelo mundo espalhando malícia e falsidade. É feio.
É torto. É o pai de toda mentira. Mas Deus não quer o pecado.”
.
Caminhando
com os mortos
Micheliny
Verunschk
Romance
2023
ed. Cia
das Letras
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